Terceiro texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la.
No indispensável documentário da BBC The century of the self, quatro episódios narram a história da apropriação da teoria de Freud pela publicidade e a política nos Estados Unidos. Começa com a trajetória do sobrinho de Freud, Edward Bernays, que leva as ideias psicanalíticas, em especial a de que as ações dos seres humanos têm motivações inconscientes, para o campo da publicidade. Até aquele momento, a propaganda era baseada, principalmente, nos fatos, nas propriedades e qualidades concretas dos produtos: como a durabilidade e resistência dos eletrodomésticos. O que Bernays fez, com grande sucesso, foi abandonar os fatos, enfatizando os sentimentos inconscientes que um produto poderia suscitar. Embora pouco se fale em Bernays, ele foi o principal responsável pelas mudanças que fazem com que, hoje, o consumo esteja associado à anseios e desejos, em oposição às necessidades.
Curiosamente, seu primeiro triunfo veio durante a década de 1920, ao convencer as mulheres a fumar.
Ao tentar entender porque as mulheres não fumavam, percebeu que elas viam o cigarro como um símbolo fálico, representante do poder masculino e, por isso, sentiam ser impróprio para uma mulher fumar. Bernays contratou, então, um grupo de mulheres para se passar por sufragistas em uma passeata, onde foram orientadas a tragar poderosamente em frente aos repórteres, se refererindo aos cigarros como "tochas da liberdade". Com essa manobra, Bernays conseguiu transformar o cigarro em um símbolo do movimento feminista e do direitos das mulheres, e desde então, as tragadas de milhões de mulheres vêm trazendo sentimentos de liberdade e emancipação, para depois culminar em cânceres, derrames e morte. Ao se aproveitar da ânsia das mulheres por autonomia, o cigarro passou a ser um paliativo assassino, em muitos casos a única mudança efetiva nas vidas de muitas donas de casa, que demoraram a ver ganhos reais em termos de oportunidades e conquistas.
Outro golpe publicitário veio com o desenvolvimento das misturas para bolo na década de 1940. Embora tenha sido pensado para facilitar a vida das donas de casa, as mulheres não estavam comprando o produto. Psicanalistas concluíram que as mulheres sentiam que não estavam tendo nenhum trabalho ao fazer o bolo instantâneo, e se sentiam envergonhadas em servir algo tão simples para seus maridos. A resposta era simples: bastava incluir um ovo na mistura. Assim, a prendada cozinheira poderia sentir que contribuiu de alguma forma para a receita. Com essa simples e maquiavélica mudança, as vendas foram alavancadas.
Esses dois exemplos servem para ilustrar o início de um processo que atualmente faz parte do nosso cotidiano. Já naturalizamos os apelos que nos invadem e se apropriam de nossos desejos de felicidade, amor, status e poder. Mas como nada é simples, o oposto benéfico das propagandas de cigarros que se entranham em nossos inconscientes não são as bizarras campanhas terroristas no verso dos maços, com fotos de fetos e pulmões lamacentos. Muito menos as proibições do estado, visando cortar os gastos públicos na área da saúde.
No filme Sem fôlego (Blue in the face), há uma cena em que Jim Jarmush (diretor independente norte-americano) conversa sobre cigarros com Auggie (Harvey Keitel).
Acho que muita gente começou a fumar porque foi glamourizado nos filmes de Hollywood. Você vê Marlon Brando, vê James Dean fumando um cigarro. Marlene Dietrich.
[...] Agora, você vai para Hollywood...Eles nos viciaram em cigarros. Você sabe, essa imagem de glamour. Você vai lá e não pode mais fumar em nenhum lugar. Se fumar depois de uma refeição, em um restaurante, ele vêm e dizem: fumar é proibido por lei em restaurantes, senhor...Eles que começaram, sabe...
Na sequência, Lou Reed fala para a câmera, em sua imensurável sabedoria...
Sim, estou fumando cigarros, muitos amigos meus morreram disso. Por outro lado, enquanto eu estou fumando cigarros, eu não estou entornando uma garrafa de uísque em 15 minutos. Assim, vendo desse ponto de vista, é uma escolha saudável.
Essa relativização das escolhas individuais é de extrema importância para as mulheres, especialmente no que toca o uso da pílula. A liberdade não é um conceito absoluto e universal. A liberdade é contextual, contingente, mutante e escorregadia. Comecei esse texto com a história da introdução do cigarro na vida das mulheres porque ela não é muito
diferente, em sua essência, da história da introdução da pílula
anticoncepcional.
Quando digo que deixar de tomar a pílula foi uma escolha libertadora, falo de uma posição muito específica: a posição de uma mulher que não sofre ameaças de violência conjugal, que vive em uma cidade cosmopolita com acesso a recursos diversos, que conhece métodos contraceptivos seguros, não só em termos de eficiência, mas também em termos de efeitos colaterais a curto e longo prazo. Falo de um lugar de onde me é permitido fazer uma aposta de liberdade, mas tenho plena consciência de que esse não é o contexto de muitas mulheres. Vivemos lutas antigas, contra violências que vão desde o assédio nas ruas e no trabalho, até o estupro e o assassinato. Em cada realidade, uma escolha significa liberdade. Para mulheres em contextos de opressão, com valores religiosos retrógrados ou companheiros abusivos, não há espaço para se pedir o uso da camisinha, ou para colocar o diafragma. Em certas situações, a castração química é um mal menor. Significa a única possibilidade de controle.
Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação da pílula pelas mulheres foi uma manobra tão elaborada quanto a que alçou o cigarro à ícone feminista.
Antes do desenvolvimento da pílula, eram inúmeros os métodos contraceptivos disponíveis: desde os menos interessantes, como a abstinência, passando por aleitamento prolongado, esponjas embebidas em diferentes substâncias, plantas, métodos de monitoramento (com e sem instrumentos) das épocas férteis do ciclo, diafragma, DIU, camisinha etc. Mas todos essas opções existiam em uma atmosfera ainda regida por valores vitorianos, que cercavam de conservadorismo tudo que era relacionado ao sexo. Muitas farmácia não vendiam contraceptivos até o final da década de 1950 e, mesmo assim, tinham a venda restrita aos clientes que eram comprovadamente casados. Com a revolução sexual da década de 1960, os métodos contraceptivos se tornaram mais disponíveis.
A pílula foi aprovada para uso em 1960, causando uma mudança massiva no tipo de contracepção usado, com as mulheres assumindo maior responsabilidade pela contracepção. Ao mesmo tempo, a atitude dos médicos em relação à contracepção mudou drasticamente; antes relutantes em relação à contracepção, ao serem agraciados com o poder de prescrever a pílula, mudam rapidamente de posição.
Como com os cigarros, a pílula foi vendida, desde o início, como uma droga segura, que não trazia riscos à saúde. Mas não demorou para que as pílulas com altas dosagens de hormônios, disponíveis até 1975, fossem associadas à formação de coágulos responsáveis por derrames, amputações e mortes. Foi necessário muita pressão de médicos e consumidores para que esses riscos fossem reconhecidos e incluídos na bula.
Desde então, as pílulas de nova geração vêm sendo desenvolvidas, visando diminuir as dosagens de hormônios e os efeitos colaterais. Mas essas "novas" pílulas ainda trazem efeitos consideráveis, muitos deles cumulativos, resultado do desequilíbrio nutricional crônico causado pelo uso prolongado da pílula. E, ao contrário do que se esperaria, estudos têm mostrado que elas, na verdade, aumentam o risco de formação de coágulos, especialmente aquelas que contêm drosperinona, como Yaz e Yasmin, suspeitas de causar a morte de 23 mulheres no Canadá, neste ano.
A história é essencial para nos lembrar das negações, embustes, fraudes, manobras e apropriações que causaram tantas mortes em nome dos lucros de uma minoria; para que não nos esqueçamos que a banalidade do mal, como coloca Hannah Arendt, se vale do aval ou da alienação da grande maioria da população, que, ao se demitir de pensar, consentem às mais imperdoáveis atrocidades.
continua...
A castração química e o medo do escuro
Segundo episódio da série Tudo o que descobri sobre a pílula e porque decidi não tomá-la.
Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.
Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).
Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.
Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.
O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis.
O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida: alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.
Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.
Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.
Para mim, é muito claro que os métodos hormonais de contracepção são métodos de castração química, de anulação do ciclo menstrual, de não aceitação de uma fertilidade que passou a ser construída como patológica. E o problema mais grave é que nosso ciclo não está só relacionado com nossa fertilidade, com a função reprodutiva, mas com nossa saúde geral e com a plena potência do corpo feminino para atuar no mundo, com sua libido, com seus desejos.
Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.
Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.
Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.
Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário.
Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.
Continua...
Não vemos as coisas como elas são: as vemos como nós somos.
Anaïs Nin
A decisão de parar de tomar a pílula não veio assim, de uma grande coragem e uma intuição clara, às quais cedi sem conflitos. Sendo uma mulher moderna, com mentalidade científica e extremamente racional, não conseguiria seguir meus instintos sem algum tipo de apoio teórico, de evidências que embasassem minhas suspeitas. Não naquele momento, pelo menos. Em parte, minha incapacidade emocional de tomar qualquer decisão que não compreendesse racionalmente, me obrigou a mergulhar em um mundo até então inexplorado, do qual eu não era nativa. Para conseguir fazer sentido de tudo isso, me afundei em uma pilha de leituras fascinantes. E o que eu não podia compreender era como todo esse conhecimento esteve escondido de mim por tantos anos. Nunca me falaram disso na escola, nem em casa, nem na faculdade, nem nas revistas femininas, nem na televisão. Hoje me é muito claro porque tudo isso permanece em um terreno ao qual poucos têm acesso. Mas esse é assunto para outro momento...
Inicialmente, ainda focada nas questões de sáude, nos meus exames alterados, busquei compreender os efeitos da pílula sobre o meu corpo; entender exatamente como ela funcionava. Por incrível que pareça, e me envergonho disso (especialmente pelo fato de ser bióloga), percebi que sabia muito pouco sobre os métodos contraceptivos que existem: sua forma de atuação, seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo, a história do seu desenvolvimento e, principalmente, o tipo de relacionamento com o corpo que cada método permite ou incentiva.
Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.
Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).
Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.
Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.
O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis.
O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida: alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.
Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.
Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.
Não conheço nenhuma mulher -
virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como
dona de casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral -
para quem o próprio corpo não seja um problema fundamental: seus
significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada
frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e
mutilações, suas violações e maturações. Existe hoje, pela primeira vez,
a possibilidade de converter nossa fisicidade ao mesmo tempo em
conhecimento e poder.
Adrienne Rich - Of woman born: motherhood as experience and institution (Do nascimento da mulher: maternidade como experiência e instituição). Trecho citado no livro A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, de Emily Martin. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 31.
A questão era se alguma mulher iria tomar uma pílula todo dia para prevenir-se da gravidez. Eles acreditam que ninguém vai fazer isso; não quando nem estão doentes, e elas não estão doentes.
James Balog, Merck Pharmaceuticals (The doctor's case against the pill, Barbara Seaman)
Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.
[...] "A mulher do século XIX é uma eterna doente", escreve Yvone Knibiehler:
A medicina da Luzes apresenta as etapas da vida feminina como [uma sucessão de] crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa constituíam também, a partir de então, provocações mais ou menos perigosas; e as menstruações, feridas dos ovários, abalam, diz-se, o equilíbrio nervoso. Todas as estatísticas provam, com efeito, que as mulheres sofreram, no século XIX, de uma morbidez e uma mortalidade superior às dos homens. A opinião pública e numerosos médicos incriminam a 'fraqueza' da 'natureza feminina': causa biológica eterna e universal, que se arriscava a alimentar um fatalismo insuperável.
Desclocamentos do Feminino, de Maria Rita Kehl. Citação do livro Corpos e corações, de Yvone Knibiehler.
Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.
Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.
Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário.
Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.
Dream of the Fisherman´s wife (Sonho da mulher do pescador), de Katsushika Hokusai.
Continua...
Tudo o que descobri sobre a pílula - e porque decidi não tomá-la (episódio piloto)
O ser humano não suporta uma vida sem significado
Carl Gustav Jung
Amigos muito queridos e perspicazes me alertaram para algo que eu mesma não tinha percebido. Comecei esse blog com a intenção de divulgar informações que para mim foram valiosas e me deram outra perspectiva sobre quase todos os aspectos da minha vida. E talvez, na ânsia de divulgar tudo o mais rápido possível, de mostrar onde estou agora, o que defendo, no que acredito, acabei começando pelo fim, que não é exatamente um fim em si, mas um lugar muito diferente de onde estava há alguns anos. Ao fazer isso, acabei por não incluir ninguém no processo que me trouxe a essas conclusões, na trajetória que percorri. Por isso, vou dar alguns passos para trás e começar do começo, ir um pouco mais devagar. Porque ao fazer isso, ao excluir todos desse processo, tudo que digo parece ter o intuito de instituir uma nova verdade, um novo discurso de autoridade. E a intenção genuína dessa iniciativa sempre foi a de mostrar um caminho alternativo, mais um caminho possível dentre tantos outros que podem ser criados.
Por isso, pretendo começar nesse mês de agosto, indo até setembro provavelmente, uma série de textos sobre a pílula e sobre o trajeto que me levou não só a deixar de tomá-la, mas a descobrir uma discussão muito rica e pouco divulgada sobre as questões políticas envolvidas nessa decisão.
Episódio piloto
Quando tento pensar em como tudo começou, lembro-me da situação deplorável em que me encontrava. Recém saída de um mestrado estressante, sem bolsa, tentando sobreviver com freelas e bicos, aos trancos e quase pulando de barrancos, com sérios conflitos familiares, um namoro intenso que acabava de começar e uma vida sem rumo certo.
Aos poucos, o trabalho foi estabilizando, a vida foi entrando nos eixos, o relacionamento foi firmando. E foi aí, nessa estranha calmaria, nessa vida estável e confortável, que o mal-estar que sempre me acompanhou, que sempre esteve rondando, me engoliu. Como diz a citação daquela pessoa famosa que não lembro o nome e que devo estar citando errado: "É quando tudo vai bem que os reais problemas começam".
Comecei a engordar exponencialmente, sentir falta de ar, labirintite...Fui acometida por uma série de traqueítes, laringites, faringites; por taquicardias, bruxismo, rinites...Tinha pesadelos recorrentes e momentos de depressão, ataques de pânico e delírios de fim de mundo.
Ia à médicos muito bons, que passavam horas em consulta me explicando como comer bem, que pílula tomar, como descobrir nódulos nos seios, quais exames fazer anualmente, que probióticos eram bons para viver para sempre. Me diziam que eu estava estressada e que devia tomar um fitoterápico para acalmar os dentes que se degladiavam durante as noite de sono conturbado; que devia fazer atividade física para manter a forma, e deixar de comer carboidratos, uma semana sim, outra não; que todo mundo hoje em dia vivia assim, e que não devia me preocupar que a pílula que tomava havia matado algumas mulheres, porque todas as pílulas tinham esse risco em potencial.
Mas por incrível que pareça, foi um reles exame de colesterol que realmente mudou minha vida. Minto, um exame de colesterol e um de triglicérides, que se aglutinaram para formam a bela e perfeita gota d'água. Quando vi que esses exames estavam um pouco alterados e que a perspectiva era de que com a idade isso só iria piorar, tive uma espécie de epifania.
Nunca me senti confortável em depender de remédios para viver. Evitava-os ao máximo. Talvez porque sempre tive dificuldade em aceitar ajuda, química ou de outra natureza. Mas sentia lá no fundo da espinha uma convicção de que eu não era doente, não deveria estar doente e não ia estar doente. Não aos 27 anos de idade, não tendo sido bem criada e bem alimentada, não tendo acesso a todo tipo de informação e a capacidade de entender meu corpo. Não quando dançava, fazia yoga, caminhava. Não quando comia bem. Não quando havia me formado bióloga, mestre em antropologia nutricional. De que adiantava tudo isso se não para aplicar na minha própria vida, na minha própria saúde?
Estava há poucos meses em um processo terapêutico intensivo, mordendo a língua por todas as vezes que maldizia a psicanálise como o refúgio dos perdedores que não tinham amigos. E bastaram esses meses iniciais para desenvolver em mim a confiança para desafiar algo de que já desconfiava há muito tempo. Para acreditar que talvez eu, uma reles qualquer, uma reles mulher, pudesse saber mais sobre o meu corpo, sobre a minha saúde, do que o meu médico afirmava saber. E foi nesse momento que toda a minha formação científica se direcionou para mim mesma, para a minha saúde; foi quando virei meu próprio objeto de pesquisa. Decretei que seria a única pessoa autorizada a desenvolver experimentos em meu corpo.
Queria entender porque estava doente. Queria ir ao fundo disso tudo.
Investi meu tempo, meu dinheiro e minha energia em uma empreitada que só posso descrever como uma peregrinação, no sentido que Hakim Bey atribui ao termo no ensaio Superando o turismo. Ele descreve o peregrino como alguém que "[...] passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição".
Essa peregrinação me fez ver um mundo diferente, um mundo que meus olhos cansados não viam. Não viam aqui, não veriam em Istambul, não veriam em Beirute, não veriam nunca, nem em Marte, nem na Lua. Eu precisava arrancar esses velhos olhos e recriar o mundo.
Então, me joguei em um processo de desconstrução brutal e perigoso, incerta se sobreviveria, tamanha o ímpeto destrutivo que me tomou. Achei que nada fosse sobrar, que não haveria mais nada ali sob os escombros quando terminasse, mas o que descobri foi algo surpreendente. O que restou de tudo isso foi pura e simplesmente eu, eu mesma; não meu nome, não meu trabalho, não meus hobbys, não o que faço, não meu traços físicos, nada que fosse palpável ou descritível. Somente eu, minha intuição e meus desejos abstratos. Mas isso me parecia muito mais real, muito mais concreto do que tudo que já havia racionalizado, teorizado, tocado ou compreendido em minha vida. Depois dessa destruição em massa, sinto que esse ser em mim, esse ser que me habita, é finalmente livre.
Antes, o que pairava era essa sombra incansável, como se nunca fosse meio dia, como se nunca houvesse claridade absoluta, como se nunca houvesse aquele momento em que a sombra finalmente retorna e você pode pisar completa no chão, você e sua sombra; juntas e eternamente separadas.
Como só percebemos que estávamos dormindo ao acordar, ao ver a diferença entre a vida que pulsava em mim e o coma em que vivia anteriormente, só pude sentir uma raiva imensa, uma raiva pelo tempo que me havia sido tirado e por saber que tantas outras pessoas, assim como eu, ainda podiam estar adormecidas.
Vi, como esses meus novos olhos, que vivemos em uma sociedade necrófila, que estupra mulheres mortas; mulheres que ela mesma matou. E essa morte simbólica é anunciada muito cedo. Ela começa com a rejeição dos nossos corpos e de tudo o que nos diferencia do corpo padrão: o corpo masculino. Vi que, desde cedo, a nossa fertilidade é a nossa mais ingrata qualidade; que ser mulher, nesse mundo, é carregar uma doença crônica que a todo momento é alvo de escrutínio médico e científico. Vi também que tudo isso tinha seus porquês, suas abomináveis explicações sem sentido.
Mas tudo começou com um projeto científico. Nesse projeto, defini que o primeiro passo para recuperar a minha vida, seria recuperar o meu corpo.
E foi aí que decidi: vou largar a pílula!
continua....
Bruxas de Wall Street
No excelente documentário Hungry for change que fala sobre alimentação, dieta, obesidade e a indústria dos alimentos, um dos entrevistados explica como é possível identificar as instituições que efetivamente detêm o poder em determinado momento histórico. Basta observar quais são as construções mais imponentes, quais emergem na paisagem de forma mais ostensiva.
Durante grande parte da nossa história, especialmente na Idade Média, a Igreja era sem dúvida a detentora do poder/saber; basta ver a grandiosidade das catedrais. Nesse momento, as bruxas incorporavam aquilo que se chocava com os dogmas religiosos. O incômodo que causavam estava relacionado a seu paganismo, a seu canal de comunicação com o mal, com o diabo e com a natureza. Mas o poder subversivo que ameaçava a Igreja residia no conhecimento que elas detiam acerca das coisas terrenas, das plantas; em sua capacidade de cura. As bruxas eram as mulheres camponesas que ousavam saber algo que não lhes havia sido revelado pelo poder divino; eram as curandeiras, as parteiras. E ao contrário do que se acredita, o seu saber não estava embasado em superstições infundadas e mágicas, mas em conhecimentos empíricos de grande valor.
Com a ascensão dos estados modernos e sua crescente separação da Igreja, os imponentes parlamentos evidenciam que o Estado passa a ser o real detentor do poder/saber. Nesse momento, as bruxas são as sufragistas; as ativistas pela legalização do aborto, pela equidade de direitos, pela liberdade econômica e profissional. Não se ouvia mais a palavra bruxa, embora elas estivessem lá: as impuras, as promíscuas, as traidoras, as assassinas.
Hoje, vivemos na época do capitalismo mundial integrado, no qual o capital é o detentor do poder e o grande manipulador do saber. Atualmente, as nações são reféns das multinacionais e do lucro, a quem as mulheres interessam enquanto produtos ou consumidoras.
Na era do capital, as bruxas têm feições menos óbvias. As bruxas de Wall Street são as mulheres que se opõem à lógica predatória e perversa da mercadoria, combatem a espetacularização da vida, marcham contra a pseudociência que embasa os discursos que justificam sua opressão. Não somos mais chamadas de bruxas; somos as irresponsáveis, as inconsequentes, as insubordinadas; somos as irracionais, mesmo quando carregadas de evidência científicas; somos as que marcham, com os filhos nas costas. Mas o que realmente somos, senão aquelas que lutam para não serem objetos ou produtos, para que seus corpos não sejam mercadorias? Que se rebelam contra a medicalização, que entendem as causas da obesidade, que combatem a desinformação e os discursos de autoridade, seja ela médica, científica, religiosa ou estatal. Porque o aspecto mais perverso do cenário atual é que, ainda não tendo vencido as outras batalhas, as lutas das bruxas pregressas - não nos livramos dos tentáculos do poder religioso e não conseguimos equidade real de direitos e emancipação- vem se somar a essa opressão histórica mais uma instância de poder onipresente. Não podemos nos iludir de que por trás da Ciência há objetividade. O consenso mais danoso que existe atualmente é o da neutralidade e objetividade científica. A Ciência, assim como a arte, está, e sempre esteve, imiscuída em uma relação promíscua com o poder.
Por isso, as bruxas atuais são acusadas de irracionais quando questionam o poder médico, que afirma tudo saber sobre nossa saúde; a indústria alimentícia, que afirma tudo saber sobre nossa comida; a indústria farmacêutica, que afirma tudo saber sobre os medicamentos que cria; o poder intelectual/científico, que afirma tudo saber sobre nossa suposta natureza; o poder midiático que afirma tudo representar com suas patéticas caricaturas.
A bruxa é e sempre foi a mulher subversiva.
As bruxas são aquelas que desafiam a ideologia dominante, o discurso opressor. E por que as bruxas de Wall Street são tão inconvenientes? Porque elas não se deixam enganar pela pirotecnia do consumo, pela tecnicidade dos hospitais, pela propaganda de segurança dos procedimentos médicos, pela confusão de conselhos ginecológicos ou pediátricos, pelo terrorismo médico/científico que as induz à automutilação. Elas são as mulheres que dão o calor dos seus corpos para os seus filhos, que não negam contato, acolhimento, leite e amor. São aquelas que têm autonomia para cuidar da sua saúde e da sua família. São as mulheres que conhecem seus corpos, seus ciclos e seus desejos. As bruxas de Wall Street trocam produtos, os reutilizam, fazem elas mesmas ou até deixam de comprar. Elas se reúnem em comunidades, reais ou virtuais. Elas se informam e divulgam informações. As bruxas amam seus corpos, e amam ser mulheres, têm carinho umas pelas outras, assim como por todos os outros gêneros, sexos, classes e grupos discriminados, silenciados, excluídos.
Na época em que poder é dinheiro e que o consumo e a desinformação são as iscas que mantêm esse poder nas mãos de uma diminuta elite, o que poderia ser mais subversivo do que viver imersa em outra lógica? A lógica da vida, da criatividade, da diversidade e do amor? Um lógica que valoriza o ser humano enquanto força de vida e não enquanto mercadoria. O que seria mais subversivo na era do capital do que se opor à capitalização dos modos de vida? O que seria mais subversivo ao biopoder do que a biopotência?
Sugiro a leitura da fantástica fala "Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada", de Peter Pal Perbart, no III Seminário Internacional A Educação Medicalizada: reconhecer a acolher as diferenças (aqui)
Termino citando o artigo O ano da bruxa de Pamela J. Grossman (Huffington Post, 15/07/2013)
"O arquétipo da bruxa deveria ser muito mais celebrado. Filhas, mães, rainhas, virgens, esposas etc. derivam significado de sua relação com outra pessoa. Bruxas, por outro lado, tem poder nos seus próprios termos. Elas têm agência. Elas criam. Elas enaltecem. Elas comungam com a natureza/espírito/Deus/Deusa/escolha-sua-própria-semântica, livremente, e livre de qualquer mediador. Mas o mais importante: elas fazem as coisas acontecerem. A melhor definição de magia que fui capaz de formular é "ação simbólica com propósito" - "ação" sendo a palavra chave. As bruxas são parteiras da metamorfose. Elas são mulheres mágicas, e elas, literalmente, mudam o mundo."
Quando você for questionada por suas escolhas "irracionais", quando for chamada de louca, inconsequente, irresponsável ou bruxa, lembre-se de que essa não é só uma questão de argumentos, ciência ou lógica. É uma questão de poder. As bruxas eram queimadas na Idade Média, eram rechaçadas da sociedade de direito e continuam sendo excluídas quando seus discursos são desautorizados como ilógicos, não científicos, infantis ou perigosos. Vemos isso nas discussões sobre o aborto, a medicalização, sobre as escolhas de saúde relativas à métodos contraceptivos, gestação, parto, amamentação e menopausa. Por isso, muito mais do que argumentos, precisamos desnudar e destruir os discursos vigentes para que as nossas evidências científicas, as nossas argumentações, as nossas lógicas, que sempre foram impecáveis, tenham espaço e alcance. Não se espante se tiver que travar uma batalha com você mesma, com seu marido, seus familiares ou pessoas por quem tem grande respeito. O discurso a ser combatido não se mantém e perpetua pela fala de um demônio de tridentes, ou de homens maus em arranha-céus. Ele está em tudo e está em todos nós. Por isso, tenha paciência e muita persistência. Não tolere o que não deve ser tolerado, independentemente de por qual boca foi dito ou por quais mãos foi feito, mesmo que sejam as suas.
DSM do blog

Esse é o DSM -I (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) do blog Mulher: condição crônica. Ele lista alguns dos transtornos mentais que criei arbitrariamente, mas muito racionalmente, para diagnosticar comportamento de leitores quando se deparam com frases ou passagens dos textos que aqui publico ou publicarei. Não difere muito do DSM oficial (que já está na 5ª versão): não tenho qualquer evidência sólida de que esses transtornos de fato existam, e os critérios para diagnosticá-los não são objetivos. O que há em comum em todos eles é que EU os criei para facilitar a minha vida e culpar os leitores dos meus textos por eventuais mal entendidos ou leituras equivocadas. Me serve muito bem. Mas também acho que o combate a esses transtornos seria muito mais útil para a saúde das pessoas do que os transtornos listados pelo DSM oficial.
DSM - 1 - Mulher: condição crônica
TICDC - Transtorno de Incapacidade de Compreensão de Discussões Complexas
SADA - Síndrome de Apego ao Discurso de Autoridade
TOD - Transtorno Opositor Desafiante (esse tem também no DSM oficial; todos que discordarem de mim serão diagnosticados com TOD)
SHO - Síndrome de House. Transtorno que acomete médicos, os que passam a acreditar que podem tomar as decisões em nome dos seus pacientes, sem informá-los adequadamente sobre as questões de saúde pertinentes, pois não acreditam que esses seres inferiores, mais próximos aos animais, são capazes de qualquer consentimento realmente informado, de tomar decisões conscientes. Passam a sonegar informações de seus paciente e enganá-los para que se submetam a procedimentos invasivos e arriscados.
...
em construção
Assinar:
Postagens (Atom)