Esse texto não é sobre dor. É sobre liberdade.

"Inez". Saul Leiter, 1947.


Acontece que eu não ando muito bem. 
Sabe quando você acorda num dia qualquer, e tudo parece fora de lugar? 

Esses dias eu li o texto de um psicanalista que defendia, com luvas de pelica, uma verdade inconveniente: a vida não tem sentido. Ok, é bem provável que eu não tenha entendido nada. E que alguém me indique filosofia. Mas não me importam, agora, as teorias consagradas.  

Por exemplo, eu conversava com uma amiga. É sobre uma coisa que contam pra gente: "seja melhor". E eu só consigo pensar: melhor pra quem? 

Acontece que às vezes reprimimos dentro de nós aquela vontade selvagem de xingar. Ou de dizer não em pelo menos 3 idiomas. Porque "minha mãe vai sofrer". Porque "não quero perder essa oportunidade". Porque: "quero ser uma pessoa melhor". 

Melhor pra que?

São tantos os tecidos jogados por cima de nós que a gente se perde embaixo deles. E, se eu não me conheço, quem é essa que apresento aos outros? 

É. Os outros quase nunca têm uma chance sequer. Falo mais dos adultos. De jogar um "não" em direção a alguém e ver ele ser transformado em algo bonito. "É um verdadeiro ato de amor", diria meu analista. Acontece que nos iludimos sobre nosso poder sobre os outros [embora, pasmem, sejamos seres perfeitamente superáveis]. 

Ao mesmo tempo em que... não é fácil se despir. Separar aqueles tecidos que nunca vestiram lá muito bem. Reconhecer aqueles que, ao contrário, se fundiram à nossa pele. E acolher aqueles que já acompanham a gente tem tanto tempo... às vezes, antes de nós, na ancestralidade. 

Acho que não há nada mais difícil do que se respeitar. Culpa. Mas "haverá pior solidão do que a ausência de si?"

E tem aquelas morais inquestionáveis. E tem aqueles valores que sempre defendemos. E tem também aquela sentença: "a vida é assim".

Mas olha só. Eu trago uma verdade conveniente sobre essas universalidades. E eu acho que você já sabe: elas nasceram de uma meia dúzia de homens. Brancos. E, cá entre nós, elas não são muito mais do que instrumentos para domesticar. Controlar o corpo das mulheres, como tantas já gritaram nas ruas e na cara dos homens universais. Controlar os corpos. E não existe valores iguais para corpos diferentes. Uma outra materialidade exige uma outra consciência. 

Mas, olhe. É mais do que isso. É sobre acreditar no que te dizem sem antes se perguntar, assim, honestamente: melhor pra quem? É sobre encontrar em cada dia aquele lugar em que você se reconhece, intimamente - então essa é minha criança! - e ir gastando o tempo nisso, tempo com ela. 

Quem sabe se pararmos de escutar por alguns instantes, se silenciarmos um pouco... Talvez esse seja um primeiro passo para a nudez. Se despir pode ser revolucionário. 

Eu vi um filme esses dias. 
Um garfinho diz a uma faquinha: -- "Fique calma, eu vou te explicar tudo". 
Ao que a faquinha pergunta, sem hesitar: --"Por que estou viva?"
E ele responde: -- "Não sei." Um ato de amor.

Então. Que seja a vida só o espaço entre a concepção e a morte. Mas quando estivermos todos apodrecendo debaixo da Terra, dentre um vasto amontoado de ossos, vou gostar de pensar que faço parte daqueles que, quando em vida, se despiram e se apresentaram muito nus, primeiro, para si mesmos; e depois para os outros. 

Gastar esse tempo, tão breve que é, carregando a beleza, a leveza e a potência da minha total insignificância.