Bruxas de Wall Street

Todos já ouviram falar das bruxas. Aquelas mulheres misteriosas e suspeitas, que tinham relação com o diabo, o mal, o obscuro, o irracional. Mulheres com a capacidade de afetar os homens, jogando-lhes feitiços; controlar fenômenos naturais e afetar as vidas de todos, por capricho ou maldade. Sua feiúra e sua beleza causavam desconforto; sempre um disfarce, com o intuito de seduzir e desviar os homens do caminho do bem. Foram e são a encarnação do mal, do pecado, do proibido. Todas as épocas tiveram suas bruxas. Gostamos de ser chamadas por nomes diferentes, seguindo a tradição de nosso mestre, o tinhoso.



No excelente documentário Hungry for change que fala sobre alimentação, dieta, obesidade e a indústria dos alimentos, um dos entrevistados explica como é possível identificar as instituições que efetivamente detêm o poder em determinado momento histórico. Basta observar quais são as construções mais imponentes, quais emergem na paisagem de forma mais ostensiva.

Durante grande parte da nossa história, especialmente na Idade Média, a Igreja era sem dúvida a detentora do poder/saber; basta ver a grandiosidade das catedrais. Nesse momento, as bruxas incorporavam aquilo que se chocava com os dogmas religiosos. O incômodo que causavam estava relacionado a seu paganismo, a seu canal de comunicação com o mal, com o diabo e com a natureza. Mas o poder subversivo que ameaçava a Igreja residia no conhecimento que elas detiam acerca das coisas terrenas, das plantas; em sua capacidade de cura. As bruxas eram as mulheres camponesas que ousavam saber algo que não lhes havia sido revelado pelo poder divino; eram as curandeiras, as parteiras. E ao contrário do que se acredita, o seu saber não estava embasado em superstições infundadas e mágicas, mas em conhecimentos empíricos de grande valor.

Com a ascensão dos estados modernos e sua crescente separação da Igreja, os imponentes parlamentos evidenciam que o Estado passa a ser o real detentor do poder/saber. Nesse momento, as bruxas são as sufragistas; as ativistas pela legalização do aborto, pela equidade de direitos, pela liberdade econômica e profissional. Não se ouvia mais a palavra bruxa, embora elas estivessem lá: as impuras, as promíscuas, as traidoras, as assassinas.


Hoje, vivemos na época do capitalismo mundial integrado, no qual o capital é o detentor do poder e o grande manipulador do saber. Atualmente, as nações são reféns das multinacionais e do lucro, a quem as mulheres interessam enquanto produtos ou consumidoras.


Na era do capital, as bruxas têm feições menos óbvias. As bruxas de Wall Street são as mulheres que se opõem à lógica predatória e perversa da mercadoria, combatem a espetacularização da vida, marcham contra a pseudociência que embasa os discursos que justificam sua opressão. Não somos mais chamadas de bruxas; somos as irresponsáveis, as inconsequentes, as insubordinadas; somos as irracionais, mesmo quando carregadas de evidência científicas; somos as que marcham, com os filhos nas costas. Mas o que realmente somos, senão aquelas que lutam para não serem objetos ou produtos, para que seus corpos não sejam mercadorias? Que se rebelam contra a medicalização, que entendem as causas da obesidade, que combatem a desinformação e os discursos de autoridade, seja ela médica, científica, religiosa ou estatal. Porque o aspecto mais perverso do cenário atual é que, ainda não tendo vencido as outras batalhas, as lutas das bruxas pregressas - não nos livramos dos tentáculos do poder religioso e não conseguimos equidade real de direitos e emancipação- vem se somar a essa opressão histórica mais uma instância de poder onipresente. Não podemos nos iludir de que por trás da Ciência há objetividade. O consenso mais danoso que existe atualmente é o da neutralidade e objetividade científica. A Ciência, assim como a arte, está, e sempre esteve, imiscuída em uma relação promíscua com o poder.

Por isso, as bruxas atuais são acusadas de irracionais quando questionam o poder médico, que afirma tudo saber sobre nossa saúde; a indústria alimentícia, que afirma tudo saber sobre nossa comida; a indústria farmacêutica, que afirma tudo saber sobre os medicamentos que cria; o poder intelectual/científico, que afirma tudo saber sobre nossa suposta natureza; o poder midiático que afirma tudo representar com suas patéticas caricaturas.

A bruxa é e sempre foi a mulher subversiva.

As bruxas são aquelas que desafiam a ideologia dominante, o discurso opressor. E por que as bruxas de Wall Street são tão inconvenientes? Porque elas não se deixam enganar pela pirotecnia do consumo, pela tecnicidade dos hospitais, pela propaganda de segurança dos procedimentos médicos, pela confusão de conselhos ginecológicos ou pediátricos, pelo terrorismo médico/científico que as induz à automutilação. Elas são as mulheres que dão o calor dos seus corpos para os seus filhos, que não negam contato, acolhimento, leite e amor. São aquelas que têm autonomia para cuidar da sua saúde e da sua família. São as mulheres que conhecem seus corpos, seus ciclos e seus desejos. As bruxas de Wall Street  trocam produtos, os reutilizam, fazem elas mesmas ou até deixam de comprar. Elas se reúnem em comunidades, reais ou virtuais. Elas se informam e divulgam informações. As bruxas amam seus corpos, e amam ser mulheres, têm carinho umas pelas outras, assim como por todos os outros gêneros, sexos, classes e grupos discriminados, silenciados, excluídos.

Na época em que poder é dinheiro e que o consumo e a desinformação são as iscas que mantêm esse poder nas mãos de uma diminuta elite, o que poderia ser mais subversivo do que viver imersa em outra lógica? A lógica da vida, da criatividade, da diversidade e do amor? Um lógica que valoriza o ser humano enquanto força de vida e não enquanto mercadoria. O que seria mais subversivo na era do capital do que se opor à capitalização dos modos de vida? O que seria mais subversivo ao biopoder do que a biopotência?

Sugiro a leitura da fantástica fala "Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada", de Peter Pal Perbart, no III Seminário Internacional A Educação Medicalizada: reconhecer a acolher as diferenças (aqui)


Termino citando o artigo O ano da bruxa de Pamela J. Grossman (Huffington Post, 15/07/2013)

"O arquétipo da bruxa deveria ser muito mais celebrado. Filhas, mães, rainhas, virgens, esposas etc. derivam significado de sua relação com outra pessoa. Bruxas, por outro lado, tem poder nos seus próprios termos. Elas têm agência. Elas criamElas enaltecemElas comungam com a natureza/espírito/Deus/Deusa/escolha-sua-própria-semântica, livrementee livre de qualquer mediador. Mas o mais importanteelas fazem as coisas acontecerem. A melhor definição de magia que fui capaz de formular é "ação simbólica com propósito" - "ação" sendo a palavra chaveAs bruxas são parteiras da metamorfose. Elas são mulheres mágicas, e elas, literalmente, mudam o mundo."

Quando você for questionada por suas escolhas "irracionais", quando for chamada de louca, inconsequente, irresponsável ou bruxa, lembre-se de que essa não é só uma questão de argumentos, ciência ou lógica. É uma questão de poder. As bruxas eram queimadas na Idade Média, eram rechaçadas da sociedade de direito e continuam sendo excluídas quando seus discursos são desautorizados como ilógicos, não científicos, infantis ou perigosos. Vemos isso nas discussões sobre o aborto, a medicalização, sobre  as escolhas de saúde relativas à métodos contraceptivos, gestação, parto, amamentação e menopausa. Por isso, muito mais do que argumentos, precisamos desnudar e destruir os discursos vigentes para que as nossas evidências científicas, as nossas argumentações, as nossas lógicas, que sempre foram impecáveis, tenham espaço e alcance. Não se espante se tiver que travar uma batalha com você mesma, com seu marido, seus familiares ou pessoas por quem tem grande respeito. O discurso a ser combatido não se mantém e perpetua pela fala de um demônio de tridentes, ou de homens maus em arranha-céus.  Ele está em tudo e está em todos nós. Por isso, tenha paciência e muita persistência.  Não tolere o que não deve ser tolerado, independentemente de por qual boca foi dito ou por quais mãos foi feito, mesmo que sejam as suas.

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