Corpus Christi

Kitagawa Utamaro

Esses rios de ar, de água, não me deixam parar. Atravessam uma carne que resiste. A realidade dela mesma é um limite, ela é um limite, a carne, que concentra o desejo em feixes contráteis, capazes de prazer, de lutar contra a dissolução no prazer absoluto - a morte, a loucura. As duas me atraem, permitir-se ceder, sair do mundo dos homens, de suas crises e contradições. Sair do mundo dos vivos, de suas moléculas entrelaçadas, dependentes, sofríveis. Existência plena, mineral.
Ídolos liberam em minha direção fios de aço, que se agarram em meus punhos para que eu possa descansar, enquanto o resto desse corpo é arrastado e minha cabeça rachada sangra.
Única forma de dormir, sono sem si.
Sono piedoso que liberta dos desejos. Desejos que giram roldanas, cordas e polias lubrificados com graxa preta, dentro do meu estômago. Cria sons impossíveis de violino, em uma carne ensanguentada - bile, gordura, ácidos e animais não digeridos. Mas as cordas soam como linha tesa, fio cortante. É duro suportar essa perpétua excitação nas extremidades, nos membros, no útero, no pescoço, na língua, nos lábios - todos eles-, nos nós concentrados de eletricidade que se acendem como vaga-lumes, em um triângulo quente que brilha entre minhas coxas.

É um mundo perigoso para pulsões fluorescentes, femininas, atraindo a atenção de predadores. Há que se contar com a proteção desse veneno próprio dos animais aposemáticos, que brilham cores vivas contra listras escuras, pois podem matar. Habilidade necessária, saber matar, com a própria carne, macia; sem dentes, sem garras. Evoluir esse veneno que liberta da camuflagem. Em algum momento um animal deve decidir que estratégia aprimorar para sua sobrevivência: forjar todas as cores opacas da floresta, das folhagens, do fundo do mar e, junto com o resto da matéria, assentar-se com as plantas, os fungos e os animais, em tons de marrom e verde; ou sintetizar venenos em sua pele úmida e brilhante. Há algo de sensual nas duas escolhas: a discrição da fusão com o ambiente, perpétua orgia esverdeada; e o apelo do objeto que se permite devorar pelo olhar, alimentando o desejo e sufocando-o, simultaneamente.

Cada animal sonha com aquilo que perde, ao ceder-se para a vida.

O vislumbre de uma mordida verde fluorescente penetra os sonhos de famintos seres marrons, que se debatem ao perceber que mordiscam carne proibida.

Uma cobra reluz na espera de outras peles venenosas para tocá-la sem risco de morte, penetrá-la neutralizando perigos, fazê-la sentir-se inofensiva.