Três mulheres

Amy Kutler,  Above the Fjord, 2010.

Neste Dia das Mulheres, sinto saudades. De três mulheres que estão longe, partes de mim exiladas, no tempo, no espaço.

Minha avó, de quem lembro a cada vez que lavo alfaces. Ela gostava de comer aqueles pequenos brotos cheios de folhinhas crocantes, embaladas como um presente pelas folhas maiores. Confesso que as alfaces ainda me são um prazer amargo, mas sei o que é um alimento de verdade.

Minha irmã, que com seus olhões verdes sempre ganhava de mim quando competíamos para ver quem aguentava mais tempo sem piscar. Sinto que aprendi algo sobre meus limites, sobre a raiva e a vontade de ganhar, mas aprendi mais sobre o prazer de ver o mundo, de olhos abertos, sem medo, até que caiam lágrimas de excesso de olhar.

Minha mãe, que enfrentava os chiliques mais agudos e desesperados toda vez que tinha que passar merthiolate no joelho dessa filha que não parava de dar estrelas no quintal. Sei que esse cuidado me permitiu dançar, cada dia mais, cada dia com menos receio e mais afinco, certa de que algo iria me curar caso meus desejos de movimento superassem as habilidades do meu corpo, produzindo escoriações, dores e frustrações, que podiam ser cicatrizadas, mesmo que à custa de mais dores e gritos desesperados.

Sinto falta dos infinitos detalhes dessas mulheres, que borbulham em mim; essas partes estranhas, exógenas, que não se integram totalmente, mas nunca vão se dissolver, nunca vão se desprender de mim. Fico impressionada como a vida pode ser tão criativa, compondo detalhes tão bonitos, de três mulheres tão complexas. Vejo que esses detalhes estão aqui, em mim, nesse dia, nessas palavras, talvez lidas por outras mulheres, atingindo algo nelas, em uma rede tão antiga quanto a primeira gestação, a primeira mulher que dividiu seu corpo com outra. Em face aos tantos problemas que vivemos hoje, fico tocada pela beleza disso tudo. 

Sobre a maldade

Etsuko Fukuya
Hoje não pude sustentar a beleza do dia. Não fui capaz de refletir o bom humor do tempo. Esgotei-me antes do pôr-do-sol. Talvez porque tive uma manhã de comunhão com as forças da natureza, em um ímpeto de perseguir borboletas. Pequenas e sedosas; delicadas borboletas brancas e amarelas que ziguezagueavam em um jardim improvisado dessa cidade de chumbo. Por um momento, pensei em tocá-las, só porque eram belas, só porque expiram em um dia e voam com tanta leveza; porque oscilam no ar, traçando caminhos não lineares, pouco eficientes, só para aproveitar todas as dimensões que o céu lhes dá. Faltam-lhe forças, por isso cedem aos menores caprichos das correntes quentes que emergem do subsolo. Cedem felizes, contudo, pois não há opção; sua impotência frente ao mar de moléculas que é seu meio as liberta.


Sempre tive aversão aos insetos que voam. Os únicos que tolerava eram essas borboletas frágeis como papeis de seda. Nunca suportei a visão das nervuras e segmentos dos insetos maiores, com pés e antenas proeminentes e o poder de voo das asas avantajadas. Acabava envergonhava dos pulos e corridas desesperadas que meu corpo dava, vergonha a que os adultos não mais se sujeitam quando defrontados com os próprios medos. Dizem que as fobias encarnam um horror inominável. Nas asas asquerosas das mariposas, em seu corpo gordo e peludo se projeta um horror primordial; horror da dissolução no éter e no caos pela ruptura de uma lei cruel e sobrenatural. Sinto esse medo especialmente nas manchas pretas e cinzas desses bichos nojentos. É um abismo intransponível, um asco incomparável. O que se condensa nesse inseto alado o deixa pesado como uma estrela morta, tornada buraco negro. Vejo mariposas obesas jogadas nas calçadas, com seu ventre gordo e hirsuto esperando para ser esmagadas por um pedestre qualquer, com sapato social, que nada teme porque transformou o horror em purpurina e luzes de natal. O horror condensado não se sublima com a morte de uma libélula ou de um besouro. Já matei um ou outro. Dele não se foge com a prisão de pobres, a exclusão de estrangeiros, a matança de etnias, o estupro de mulheres ou a destruição da natureza. Dele não se foge. Dele não se foge.