Fracassados

Vídeo mostra erupção vulcânica no Monte Sinabung, na Indonésia ...

Erupção Monte Sinabung, Indonésia, agosto 2020. 

Agosto, mês de explosões. Dia 4, Porto de Beirute, um depósito que armazenava nitrato de amônio. Rússia, dia 10, um posto de gasolina em Volgogrado. O vulcão Sinabung na Indonésia, inativo por séculos, até 2010, quando voltou a entrar em atividade. Em 10 de agosto de 2020, lançou uma nuvem de cinzas de 5km de altura. Coincidências, talvez. Curioso, pelo menos. Quando estamos todos in, para dentro, tantos ex, para fora. Explodere, fazer sair por meio das palmas, o significado original do latim vem do teatro, já que os maus atores eram expulsos do palco por meio da violência dos ruídos: gritos, vaias, palmas. Rejeitar. Golpear com os pés na dança, romper as ondas ao nadar. Precisei fazer essa costura, amarrações, para entender o imenso impacto desses eventos em mim.

Sou filha de pai Libanês. Beirute não é só um lugar exótico, é parte da minha herança.

Sempre fui fascinada por grandes forças, terremotos, tsunamis, vulcões. Quando era mais jovem, queria ser caçadora de tornados. Me entretenho com horas e horas de imagens de destruição, num misto de compaixão pelas vidas que são inevitavelmente afetadas, e de obsessão, assombro, pela pedagogia da tragédia.

Mas hoje minha vida é dançar, golpear o chão com os pés, romper as ondas do mar. Agradecer os aplausos, sofrer sua falta, fazer ruídos violentos.

Tantos ex, nesses dias in.

Parte da minha vida é dedicada a deixar de temer essa energia extrusiva, ‘para fora’, tão assustadora dentro do lar, na pequenez do meu corpo, das minhas tantas casas. Histórias infantis, paredes de palha, de madeira, de cimento. Qual delas irá resistir? E se o sopro vem de dentro?

As costuras da escrita, esses labirintos de crochê, me levam, quase sempre, ao útero, minha primeira casa, o dentro original, meu primeiro dentro. E o trauma do primeiro sair.

Diz-se que o amor é uma invenção, nascemos com ódio, e só! Com uma ânsia de vida que precisa de violência para se separar do corpo que nos nutriu. A grande explosão. Big Bang: assim começa todo universo, assim começou o meu. A fusão é essencial, mas quando não se rompe aquele fio, quando um ser se resigna a viver a fantasia do útero eterno, com as pernas encolhidas, sufoca-se em posição fetal. Morre ao tentar se acalmar, ao tentar se apequenar para ficar.

Eu, como boa menina, não saí com facilidade. Tive problemas com a raiva desde o útero. O medo de desagradar, todas aquelas ambições de espaços maiores, a arrogância de considerar aquele lugar acolhedor e orgânico, meu primeiro lar, inadequado à minha recém-adquirida grandeza. Até hoje não sei bem cuidar de uma casa, com medo de que vou destruí-la. Por não saber como sair, também não sei como ficar. Repouso e atividade em um enlace inescapável. Não se soluciona um, sem mergulhar no outro.

“[...] as imagens do repouso, do refúgio, do enraizamento, [...] todas elas sugerem um mesmo movimento em direção às fontes do repouso. A casa, o ventre, a caverna, por exemplo, trazem a mesma grande marca da volta à mãe.”

A Terra e os devaneios do repouso – Ensaio sobre as imagens da intimidade.

Gaston Bachelar.

Ninguém pensa na ira, na soberba necessária para sair da barriga. Não se fala muito disso, que os bebês não são inofensivos. De um dia para o outro, considerar-se apto a dar um salto evolutivo, respirar, viver na atmosfera. Pura e sadia arrogância. Depois, passar meses, anos, tentando se separar ainda mais, sofrendo para se contornar, defender suas próprias barreiras, sua ira como arma, contra esse retorno que se chama amor. Essa série de reparos constantes que fazemos ao destruir os laços, a cada segundo, quando viramos outra pessoa.

“[...] No empuxo da aceleração geral e da hiperatividade desaprendemos também a ira. [...] A ira, ao contrário, coloca definitivamente em questão o presente. Ela pressupõe uma pausa interruptora no presente. É nisso que ela se distingue da irritação. A dispersão geral que marca a sociedade de hoje não permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.”

Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han.

As mitologias ao redor do meu nascimento são várias e confusas. Havia um cordão ao redor do meu pescoço, havia uma mulher, minha mãe, incrivelmente forte e inteligente, mas jovem e exausta, num mundo de mulheres exaustas, de autoridades que diziam que eu estava atrasada. Havia cirurgias e todos aqueles seres de jaleco que queriam ser capazes de dar à luz, com facas e anestesias. Sempre pensei que se tivessem me dado mais tempo, eu teria saído sozinha. Mas hoje em dia, percebo, em todas as minhas repetições patológicas, que eu ainda não existia. Esse corpo que não existe precisa que todo o universo conspire, que todo a história se alinhe. Esse corpo de mulher, que já se sabia rosinha, cuidador, paciente, podia esperar, devia esperar. Devia ficar. Ou, esse corpo de mulher, que está ali, a seu tempo, criando pulmões, esperando sua hora, precisa ser apressado. As duas fantasias me servem bem, daí a vantagem das fantasias.

“Imaginar será sempre maior que viver. O trabalho do segredo vai infinitamente do ser que esconde para o ser que se esconde. O cofre é um calabouço de objetos. E eis que o sonhador sente-se no calabouço de seu segredo. Gostaríamos de abrir e gostaríamos de nos abrir.”

Gaston Bachelar. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria.

Autonomia ou amor? Autenticidade ou submissão? Ex? In? Posso ir até aquele cantinho, engatinhando e ainda ser amada, cuidada? Ainda vou poder viver? Posso ir mais longe ainda e voltar sem retaliações? Na dúvida, fica-se. Talvez seja mais seguro. Se eu ficar, tenho controle. In-volução. Observo, então, atentamente, obsessivamente, qualquer sinal dessa mãe, dessa figura materna, desse pai que ela idealiza. Observo-os, estudo-os, sou uma espiã sem linguagem, ou sem língua, não sei. E crio inúmeras teorias, todas falsas, todas teorias do medo e da sobrevivência, teorias mínimas, como uma criança, pequenas, distorcidas. Testo suas reações aos meus desejos, às minhas ações, aos meus deslizes, e como um cientista incompetente, registro tudo que corrobora minhas fantasias invertidas de grandeza, de que minha raiva é destrutiva, de que os adultos são frágeis, de que eu posso cuidar deles.

Gaston Bachelard em ‘A terra e os devaneios do repouso’, argumenta que “a vontade de olhar para o interior das coisas torna a visão aguçada, a visão penetrante. Transforma a visão numa violência. Ela detecta a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas. A partir dessa vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos, devaneios que formam um vinco entre as sobrancelhas. Já não se trata então de uma curiosidade passiva que aguarda os espetáculos surpreendentes, mas sim de uma curiosidade agressiva, etimologicamente inspetora. É esta a curiosidade da criança que destrói seu brinquedo para ver o que há dentro. (...) Não retemos senão a necessidade de destruir e de quebrar, esquecendo que as forças psíquicas em ação pretendem deixar os aspectos exteriores para ver outra coisa, ver além, ver por dentro, em suma, escapar à passividade da visão.”

A criança nasce mundo, ela é toda, ela é tudo. Quaisquer sentimentos e ações dos cuidadores são responsabilidade dela. A não ser que ela possa ser. E para isso, é preciso que esse ódio não seja temido. A criança não sabe nada sobre a guerra que estoura, sobre o luto, sobre a epidemia, sobre a misoginia. Ela mede: se pode ser, pode ir, pode voltar. Pode viver. Mas ir não é uma relação espacial, é uma errância subjetiva.

É preciso sobra existencial, gordura social, para que esse ódio seja absorvido. Para que essa curiosidade investigativa, violenta, seja vista como positiva. A criança é tão pequena e indefesa que teme matar, precisa delirar sua impotência. É tão louca que se pensa mais forte que toda aquela carne que a ampara, mesmo que mal. E talvez seja. Por que é pequena em matéria, mas uma fundura de sombras e medos, um terror para os adultos. Foi projetada para enlouquece-los com seu choro, com suas demandas. Amar é dar o que não se tem. É dar sua falta. Aceitar que o choro de um bebê ecoe naquele lugar sem peso que se aproxima da loucura.

Sheita Heti, no livro Maternidade (p.28), resume bem esse sonho de toda criança, de todo adulto:

“Este será um livro para evitar as lágrimas futuras – para evitar que eu e minha mãe choremos. Se, depois de lê-lo, minha mãe parar de chorar de vez, poderemos dizer que o livro foi bem-sucedido. Eu sei que não é o trabalho de uma criança impedir que sua mãe chore, mas não sou mais criança. Sou escritora. A transformação pela qual passei, de criança para escritora, me deu poderes – quero dizer que poderes mágicos não estão tão longe assim das minhas capacidades. Se eu for uma escritora boa o bastante, talvez possa fazê-la parar de chorar. Talvez eu consiga entender por que ela está chorando, e por que eu também choro, e minhas palavras possam nos curar.”

Não tenho crianças, mas já fui uma, e como todos os adultos, continuo sendo. E toda essa operação complexa de ser criança e adulto, num mesmo corpo, brincar e não se matar, arriscar, conhecer, e ainda garantir algum tipo de segurança e conforto, para que as próprias brincadeiras sejam possíveis, é dos desafios que mais me surpreenderam quando vi que a vida adulta não era nada como a fantasia que havia comprado na infância e adolescência. Não comprei à toa, claro, me foi vendida com um objetivo muito claro, matar a vida, matar esse ódio que é vida, essa ira que é separação, que é diferença, esse olhar violento que tenta quebrar os próprios brinquedos, tenta se quebrar e olhar para dentro. Essa ira de que falo, se fosse sentido, não se converteria tão facilmente nas violências cotidianas que vemos, contra tudo que demonstra ser buraco, ser vazio...tudo que não sou eu. Rupturas são violentas, e a violência, em seu devido lugar, é vital. Evita todas as outras violências deslocadas, da covardia, da projeção no outro. Bela violência de viver, sem precisar matar ou morrer. (Na maioria das vezes.)

Tenho várias lembranças da raiva, a mais curiosa, numa briga com uma de minhas melhores amigas no jardim de infância, para sentar no chão, no primeiro lugar da fila. Senti um vazio. Sentia a falta dela. Senti esse misto que chamam gozo, de um prazer com dor. De impor minha vontade, minha competitividade. E estar lá, só, no lugar que queria. Depois, voltamos a brincar. Eu com meu universo expandido, ela um pouco mais longe de mim. Sabia que teria que passar um tempo consertando as paredes do que havia destruído.

O amor seria, assim, uma reconstrução, não é natural ou instintivo. Sempre um ir de novo. Uma reparação. Retorno ao lugar do ódio, agora livre do medo de se afastar e se perder. Esse aconchego que só existe quando há duas peles, quando há um objeto que se encapsula, e cria o calabouço do seu próprio segredo. Cria o espaço ao redor de si para que outro venha com seu olhar, com sua curiosidade agressiva, no melhor sentido do termo. Não à toa, o ex de existir.

Amar é o privilégio do fracasso! O amor é para os bons cientistas.