Fábrica de senhoras, fábrica de mulheres

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Women and perceptions of pain, Sarah Pierroz.

Vejo corpos de mulheres jovens, envoltos em mortalhas, sendo jogados pelas janelas de altos edifícios antigos, por mulheres anciãs, detentoras de uma espécie de tecnologia da feminilidade, mulheridade.
Corpos mortificados, envolto em panos, corpos de pano.
Em oficinas clandestinas de costura, mulheres velhas e suas linhas, dia e noite tecem a humanidade, 
ou a metade fodida, com vagina. 
Novos corpos empalhados, que aceitam ser lançados por vidraças abertas, escancaradas, para ganhar o direito de entrar em uma antiga ordem, para ser mulher, como é possível, aceitando a própria morte, fria e fabricada, holocausto eterno de úteros carcomidos pelo excesso de outros, excesso de filhos, ou a falta deles.
Há uma única questão. A maior questão do mundo, que são duas e uma só.
Eu estou viva?
Eu sou mulher?

Quem são essas fêmeas de pele dura, escura e calcinada? Exercem atos de horror, em um consentimento passivo, que ao longo dos anos se engrossa em certezas, descama teorias e racionalizações moribundas.
Como se justifica uma vida mortificada? Como somos capazes de sufocar algo tão singular, forjado em bilhões de anos de acaso e contingência?
Entendo que os homens sejam guerra e morte. Mas não as mulheres. Como cedemos a esse vórtex mentiroso, vergonhoso, que busca esmagar o mundo sem qualquer requinte, por mera força. Nós que expandimos e contraímos diariamente, que somos pulsáteis, cíclicas. 

Ainda bebês, meninas, olhamos para cima, para montanhas de carne e pele e seios, que do alto de uma estranha hierarquia se alimentam do desejo das meninas indefesas de não estarem sozinhas, de sua fé cega, de criança, em um caminho e um destino que tornem menos assombrada essa estrada que leva aonde? Uma trilha noturna, de capuzes vermelhos e ameaças. Deve-se morrer, não respirar, pisar leve, ser leve, não comer, não ter, não ser, não. A palavra mais dita.

Para onde foi a alegria de ter um inconsciente perpetuamente cheio, fazendo pressão, como a água contida em uma barragem repleta de pequenas rachaduras, que criam minúsculas cachoeiras, e, vez ou outra, arco-íris. Sem medo do esgotamento da criatividade por conta do acesso ao real, ao nu do ser, que não existe. Celebração das cisões eternas que nos distanciam do tédio do paraíso. Esse mistério, região obscura, campo do brincar e do medo.

...mas elas seguem tecendo a humanidade, ou a metade fodida, com vagina. Fodidas por serem espaço oco, muscular, de encontro entre corpos, orifícios; esse túnel escuro, território sagrado, jerusalém dos sofridos. Pouco importa a manutenção de linhagens ou heranças, o pavor vem da erupção de ameaças de alteridade, que sobem quentes do inferno, mostrando a inegável penetração de quem penetra, em um outro, que deve se manter outro, para que o sexo não seja uma farsa ou piada.

Por isso, as mulheres devem morrer. Por isso as mulheres morrem. 
Não comer, não ter, não ser, não. A palavra mais dita.