Três mulheres

Amy Kutler,  Above the Fjord, 2010.

Neste Dia das Mulheres, sinto saudades. De três mulheres que estão longe, partes de mim exiladas, no tempo, no espaço.

Minha avó, de quem lembro a cada vez que lavo alfaces. Ela gostava de comer aqueles pequenos brotos cheios de folhinhas crocantes, embaladas como um presente pelas folhas maiores. Confesso que as alfaces ainda me são um prazer amargo, mas sei o que é um alimento de verdade.

Minha irmã, que com seus olhões verdes sempre ganhava de mim quando competíamos para ver quem aguentava mais tempo sem piscar. Sinto que aprendi algo sobre meus limites, sobre a raiva e a vontade de ganhar, mas aprendi mais sobre o prazer de ver o mundo, de olhos abertos, sem medo, até que caiam lágrimas de excesso de olhar.

Minha mãe, que enfrentava os chiliques mais agudos e desesperados toda vez que tinha que passar merthiolate no joelho dessa filha que não parava de dar estrelas no quintal. Sei que esse cuidado me permitiu dançar, cada dia mais, cada dia com menos receio e mais afinco, certa de que algo iria me curar caso meus desejos de movimento superassem as habilidades do meu corpo, produzindo escoriações, dores e frustrações, que podiam ser cicatrizadas, mesmo que à custa de mais dores e gritos desesperados.

Sinto falta dos infinitos detalhes dessas mulheres, que borbulham em mim; essas partes estranhas, exógenas, que não se integram totalmente, mas nunca vão se dissolver, nunca vão se desprender de mim. Fico impressionada como a vida pode ser tão criativa, compondo detalhes tão bonitos, de três mulheres tão complexas. Vejo que esses detalhes estão aqui, em mim, nesse dia, nessas palavras, talvez lidas por outras mulheres, atingindo algo nelas, em uma rede tão antiga quanto a primeira gestação, a primeira mulher que dividiu seu corpo com outra. Em face aos tantos problemas que vivemos hoje, fico tocada pela beleza disso tudo. 

Sobre a maldade

Etsuko Fukuya
Hoje não pude sustentar a beleza do dia. Não fui capaz de refletir o bom humor do tempo. Esgotei-me antes do pôr-do-sol. Talvez porque tive uma manhã de comunhão com as forças da natureza, em um ímpeto de perseguir borboletas. Pequenas e sedosas; delicadas borboletas brancas e amarelas que ziguezagueavam em um jardim improvisado dessa cidade de chumbo. Por um momento, pensei em tocá-las, só porque eram belas, só porque expiram em um dia e voam com tanta leveza; porque oscilam no ar, traçando caminhos não lineares, pouco eficientes, só para aproveitar todas as dimensões que o céu lhes dá. Faltam-lhe forças, por isso cedem aos menores caprichos das correntes quentes que emergem do subsolo. Cedem felizes, contudo, pois não há opção; sua impotência frente ao mar de moléculas que é seu meio as liberta.


Sempre tive aversão aos insetos que voam. Os únicos que tolerava eram essas borboletas frágeis como papeis de seda. Nunca suportei a visão das nervuras e segmentos dos insetos maiores, com pés e antenas proeminentes e o poder de voo das asas avantajadas. Acabava envergonhava dos pulos e corridas desesperadas que meu corpo dava, vergonha a que os adultos não mais se sujeitam quando defrontados com os próprios medos. Dizem que as fobias encarnam um horror inominável. Nas asas asquerosas das mariposas, em seu corpo gordo e peludo se projeta um horror primordial; horror da dissolução no éter e no caos pela ruptura de uma lei cruel e sobrenatural. Sinto esse medo especialmente nas manchas pretas e cinzas desses bichos nojentos. É um abismo intransponível, um asco incomparável. O que se condensa nesse inseto alado o deixa pesado como uma estrela morta, tornada buraco negro. Vejo mariposas obesas jogadas nas calçadas, com seu ventre gordo e hirsuto esperando para ser esmagadas por um pedestre qualquer, com sapato social, que nada teme porque transformou o horror em purpurina e luzes de natal. O horror condensado não se sublima com a morte de uma libélula ou de um besouro. Já matei um ou outro. Dele não se foge com a prisão de pobres, a exclusão de estrangeiros, a matança de etnias, o estupro de mulheres ou a destruição da natureza. Dele não se foge. Dele não se foge. 

Tempo

Etsuko Fukaya

O que é a vida se não pêssegos maduros, suculentos; uma mescla de vermelhos alaranjados, penugem suave, sem sulcos de desidratação ou cores de prematuridade. Nem pequenos demais, nem inchados de dor. Reais, crescidos até seu limite, caídos do pé quando o corpo pesado se separa do ramo, sem esforço ou brutalidade. A impotência é amiga do homem. Ao tentar lutar contra o tempo das coisas, as matamos, mesmo que sua matéria esteja ali, crescendo forçadamente, ultrapassando os limites das frutas, dos animais e dos humanos. Mortos-vivos, alimentando-se de vegetais e animais além do tempo, em um universo paralelo em que não há pausa e não há espaços entre seres e suas ações. Um mundo cubista de bocas alienadas, caindo sobre pêssegos artificiais, narizes que não sentem o aroma da pressa, pessoas sobre pessoas, ações justapostas umas às outras.
Dentro de um quadro, uma moldura pesada, barroca, dourada. Aos poucos se consome todo o ar, pois esse pintor não pode parar de preencher espaços. O vazio come a carne de todos. E a arte (não) nos salvará.

Anjo do Lar



Em comemoração aos 106 anos de Simone de Beauvoir, um pouco de Virginia Woolf.
Virginia Woolf leu esse texto para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em 21 de janeiro de 1931. Foi publicado postumamente em A morte da mariposa, 1942.

Quando a secretária de vocês me convidou para vir aqui, ela me disse que esta Sociedade atende à colocação profissional das mulheres e sugeriu que eu falasse um pouco sobre minhas experiências profissionais. Sou mulher, é verdade; tenho emprego, é verdade; mas que experiências profissionais tive eu? Difícil dizer. Minha profissão é a literatura; e é a profissão que, tirando o palco, menos experiência oferece às mulheres – menos, quero dizer, que sejam específicas das mulheres. Pois o caminho foi aberto muitos anos atrás – por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot* –; muitas mulheres famosas e muitas outras desconhecidas e esquecidas vieram antes, aplainando o terrenoe orientando meus passos. Então, quando comecei
a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O riscar da caneta não perturbava a paz do lar. Não se retirava nada do orçamento familiar. Dezesseis pences bastam para comprar papel para todas as peças de Shakespeare – se a gente for pensar assim. Um escritor não precisa de pianos nem de modelos,
nem de Paris, Viena ou Berlim, nem de mestres e amantes. Claro que foi por causa do preço baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras,
antes de dar certo nas outras profissões.

Mas vamos à minha história – ela é simples. Basta que vocês imaginem uma moça num quarto, com uma caneta na mão. Só precisava mover aquela caneta da esquerda para a direita – das dez à uma. Então ela teve uma ideia que no fundo é bem simples e barata – enfiar algumas daquelas páginas dentro de um envelope, colar um selo no canto de cima e pôr o envelope na caixa vermelha da esquina. Foi assim que virei jornalista; e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do mês seguinte – um dia gloriosíssimo para mim – com uma carta de um editor e um cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que não mereço muito ser chamada de profissional, que não conheço muito as lutas e as dificuldades da vida de uma mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele dinheiro com pão e manteiga, aluguel, meias e sapatos ou com a conta do açougueiro, saí e comprei um gato – um gato lindo, um gato persa, que logo me criou sérias brigas com os vizinhos.

Existe coisa mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas com o pagamento? Mas esperem aí. Os artigos têm de ser sobre alguma coisa. O meu, se bem me lembro, era sobre um romance de um homem famoso. E, quando eu
estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”.** Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez
não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado,
era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está  escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura”. E ela fez que ia guiar minha caneta. E agora eu conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro – digamos, umas quinhentas libras anuais? –, e assim eu não precisava só do charme para viver. Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo. E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam – falando sem rodeios – mentir. Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela. Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade. Quando eu achava que já tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira. No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo em busca de aventuras. Mas foi uma experiência real; foi uma experiência inevitável para todas as
escritoras daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora.

Mas continuando minha história: o Anjo morreu, e o que ficou? Vocês podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum – uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moça só tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que é “ela mesma”? Quer dizer, o que é uma mulher? Juro que não sei. E duvido que vocês saibam. Duvido
que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas. E de fato esta é uma das razões pelas quais estou aqui, em respeito a vocês, que estão nos mostrando com suas experiências o que é uma mulher, que estão nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informação da maior importância.

Mas retomando a história de minhas experiências profissionais. Recebi uma libra, dez xelins e seis pences por minha primeira resenha, e comprei um gato persa com esse dinheiro. E aí fiquei ambiciosa. Um gato persa é uma coisa
ótima, disse eu; mas um gato persa não chega. Preciso de um carro. E foi assim que virei romancista – pois é muito estranho que as pessoas nos deem um carro se a gente contar uma história para elas. E é ainda mais estranho, pois a coisa
mais gostosa do mundo é contar histórias. É muito mais agradável do que escrever resenhas de romances famosos. Mas, se é para atender à secretária de vocês e lhes contar minhas experiências profissionais como romancista, preciso falar de uma experiência muito esquisita que me aconteceu como romancista. E, para entender, primeiro vocês têm de tentar imaginar o estado de espírito de um romancista. Acho que não estou revelando nenhum segredo profissional ao dizer que o maior desejo de um romancista é ser o mais inconsciente possível. Ele precisa se induzir a um estado de letargia constante. Ele quer que a vida siga com toda a calma e regularidade. Enquanto escreve, ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas um dia depois do outro, um mês depois do outro, para que nada venha a romper a ilusão em que vive – para que nada incomode ou perturbe os misteriosos movimentos de farejar e sentir ao redor, os saltos, as arremetidas e as súbitas descobertas daquele espírito tão tímido e esquivo, a imaginação. Desconfio que seja o mesmo estado de espírito para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocês me imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocês imaginem uma moça sentada com uma caneta na mão, passando minutos, na verdade horas, sem molhar a pena no tinteiro. Quando penso nessa moça, a imagem que me ocorre é alguém pescando, em devaneios à beira de um lago fundo, com um caniço na mão. Ela deixava a imaginação vaguear livre por todas as pedras e fendas do mundo submerso nas profundezas de nosso ser inconsciente. Então vem a experiência, a experiência que creio ser muito mais comum com as mulheres do que com os homens que escrevem. A linha correu pelos dedos da moça. Um tranco puxou a imaginação. Ela tinha sondado as poças, as funduras, as sombras onde ficam os peixes maiores. E então bateu em alguma coisa. Foi uma pancada forte. Espumarada, tumulto. A imaginação tinha colidido numa coisa dura. A moça foi despertada do sonho. E de fato ficou na mais viva angústia e aflição. Falando sem metáforas, ela pensou numa coisa, uma coisa sobre o corpo, sobre as paixões, que para ela, como mulher, era impróprio dizer. E a razão lhe dizia que os homens ficariam chocados. Foi a consciência do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixões que a despertou do estado de inconsciência como artista. Não podia mais escrever. O transe tinha acabado. A imaginação não conseguia mais trabalhar. Isso creio que é uma experiência muito comum entre as mulheres que escrevem - ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Pois, embora sensatamente os homens se permitam grande liberdade em tais assuntos, duvido que percebam ou consigam controlar o extremo rigor com que condenam a mesma liberdade nas mulheres.

Então, essas foram duas experiências muito genuínas que tive. Foram duas das aventuras de minha vida profissional. A primeira - matar o Anjo do Lar - creio que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experiências do corpo, creio que não resolvi. Duvido que algumas mulheres já tenham resolvido. Os obstáculos ainda são imensamente grandes - e muito difíceis de definir. De fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais os obstáculos para uma mulher, e não para um homem? Por dentro, penso eu, a questão é muito diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher possa sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar. E se é assim na literatura, a profissão mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora vocês estão exercendo pela primeira vez?

São perguntas que gostaria de lhes fazer, se tivesse tempo. Na verdade, se insisti nessas minhas experiências profissionais, foi porque creio que também sejam as de vocês, embora de outras maneiras. Mesmo quando o caminho está nominalmente aberto - quando nada impede que uma mulher seja médica, advogada, funcionária pública -, são muitos, imagino eu, os fantasmas e obstáculos pelo caminho. Penso que é muito bom e importante discuti-los e defini-los, pois só assim é possível dividir o trabalho, resolver as dificuldades. Mas, além disso, também é necessário discutir as metas e os fins pelos quais lutamos, pelos quais combatemos esses obstáculos tremendos. Não podemos achar que essas metas estão dadas; precisam ser questionadas e examinadas constantemente. Toda a questão, como eu vejo - aqui neste salão, cercada de mulheres que praticam pela primeira vez na história não sei quantas profissões diferentes - é de importãncia e interesse extraordinário. Vocês ganharam quartos próprios na casa que até agora era só dos homens. Podem, embora com muito trabalho e esforço, pagar o aluguel. Estão ganhando suas quinhentas libras por ano. Mas essa liberdade é só o começo; o quarto é de vocês, mas ainda está vazio. Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido. Como vocês vão mobiliar, como vocês vão decorar? Com que vão dividi-lo, e em que termos? São perguntas, penso eu, da maior importância e interesse. Pela primeira vez na história, vocês podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais serão as respostas. Bem que eu gostaria de ficar e discutir essas perguntas e respostas - mas não hoje. Meu tempo acabou, e paro por aqui.



*. Fanny Burney (1752-1840) escreveu romances e diários; Aphra Behn (1640-89) foi poeta, romancista e dramaturga; e Harriet Martineau (1802-76) escreveu sobre um amplo
leque de assuntos. Ver também as notas 9 (p. 41) e 14 (p. 44). (N.E.)
 **. Poema de Coventry Patmore (1823-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das mulheres. (N.E.)


Precisamos falar sobre sangue

"A visão é sempre uma questão de poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?"

"I am rooted, but I flow" Virgínia Wolf. Imagem Catherine G. McElroy. Occupy Menstruation.



Enquanto escrevo, sangro. Não o sangue romântico dos escritores e suas musas pálidas, não um sangue metafórico que representa algo mais elevado. Sangro sangue. Sangue real, visível, palpável, que escorre das paredes do meu útero, desce pelo canal da minha vagina e deixa meu corpo entrando em um mundo no qual não é bem vindo. Não é o sangue da guerra, da valentia e da violência dos homens, esse sangue tão valorizado dos ferimentos de batalha. É sangue de humanidade e fragilidade, de inescapável ligação com a matéria orgânica.

Um dia antes de sangrar, sonhei que matava um coelho, um coelho preto, com uma faca pequena e muito afiada. Em um momento de absoluta animalidade, com andar inaudível, de felina, acertei-o com uma facada certeira no pescoço. Não me incomodei em matá-lo; estava em minha vestimenta animal. Mas vê-lo morto e ter que carregá-lo, enquanto suas vértebras se quebravam em minhas mãos ensanguentadas foi uma experiência onírica das mais brutais. Embora superficialmente possa parecer um sonho de caça, violência e valentia, foi muito mais um sonho sobre a minha fragilidade e a do coelho, sobre a carne tênue que eu cortei e o sangue e a vida que ele derramou. Foi um sonho sobre vértebras que se despedaçam em um ser fragilizado pela morte.

Lidar com sangue é lidar com vida e a possibilidade de sua perda. É lidar com a morte, o medo e a impotência frente a um mundo sobre o qual temos pouco controle. Expiramos em um segundo, há milhões de formas de morrer. E temos a desesperada necessidade de nos manter afastados desse aspecto brutal, dessa indiferença cósmica que faz questão de nos mostrar a cada segundo que, por mais que amemos, por mais profundas que sejam nossas experiências, por mais conhecimento que possamos obter do mundo, nada nos salva, nada nos dá garantias.

Desde o momento em que decidi escrever sobre a menstruação, sabia que teria que fazê-lo sangrando. É nesse momento de fragilidade que está um dos períodos mais férteis das mulheres. Não a fertilidade exterior, ligada à ovulação e à capacidade de gerar um vida, de povoar o mundo. É de uma fertilidade mais sutil e muito mais íntima. Uma fertilidade que não deve nada ao mundo. Que não demanda produtividade. Sem função aparente. Não é à toa que o maior proponente da supressão menstrual seja o médico brasileiro autor do livro Menstruação - a sangria inútil, sobre o qual pretendo falar em mais detalhes nos próximos textos.

Defendo com vigor o abandono das noções de utilidade e produtividade vendidas atualmente, especialmente para as mulheres. Elas garantem a destruição dos aspectos mais sutis da psicologia feminina em prol de sua inserção em um mundo hostil à tudo que se insere em seu corpo. Utilidade é um conceito bastante perigoso, geralmente apropriado por adeptos de visões extremamente limitadas do mundo, nesse caso homens, que se aventuram a falar do corpo de mulheres. Com pouca criatividade e pouca disposição à pensar de forma divergente, esses homens - porque a ciência e a história foram até recentemente feitas exclusivamente por eles- não tiveram a capacidade de atribuir qualquer sentido positivo às estruturas e eventos exclusivos do corpo feminino: clitóris, seios, menstruação, contracepção, gestação, parto, amamentação e menopausa. A violência obstétrica, as taxas recorde de cesáreas sem indicação médica, os procedimentos ritualísticos e não apoiados por evidências feitos durante o parto (episiotomia, tricotomia, posição deitada no parto etc), o incentivo à supressão menstrual, a indicação indiscriminada dos contraceptivos hormonais, a falta de diálogo entre médicos e pacientes sobre seus tratamentos e exames de saúde, o terrorismo em torno do câncer de mama e outros cânceres ginecológicos, os tabus que cercam a amamentação e a menopausa, tudo isso ilustra um cenário de completo desconhecimento e debate esclarecido (e corajoso) sobre o corpo feminino.

A história da medicina é das mais assustadoras, especialmente nos episódios ligados ao estudo anatômico do corpo feminino. Até pouco tempo não se sabia quase nada sobre o clitóris. Ainda hoje se disseminam mitos sobre o ponto G e o orgasmo feminino. A facilidade com que os processos do corpo feminino são descartados como inúteis demonstra a arrogância daqueles que se propõe a estudá-lo. Mais perigosa é a ideologia que sustenta a visão de que o corpo feminino é falho e que os processos e estruturas que lhes são particulares podem ser facilmente substituídos ou suprimidos sem trazer risco à saúde e à integridade psíquica das mulheres. O parto ilustra muito bem isso. A crença de que trazer um bebê ao mundo por meio de uma cirurgia é mais seguro e mais indicado, tanto para mãe quanto para a criança, só se sustenta porque tanto os médicos quanto as mulheres foram socializadas em uma cultura que considera descartáveis e facilmente substituíveis os fenômenos que se inscrevem nos corpos femininos. A menopausa é um ótimo contraexemplo, uma vez que as terapias de reposição hormonal (agora consideradas perigosas para a saúde) buscavam justamente negar e reverter os efeitos das mudanças hormonais características dessa fase. Vivemos a negação da menstruação e do parto ao mesmo tempo em que não aceitamos o fim da fertilidade. Somos extremamente infantis e avessos à mudanças. Como mulheres, somos penalizadas pela perspectiva parcial e limitada por meio da qual o mundo foi interpretado nos últimos milhares de anos.

O corpo é uma entidade que foi escravizada pelos desejos predatórios e vorazes de um mundo que só se sustenta com crescimento constante, produtividade ininterrupta e lucros crescentes, cada vez mais concentrados. A cisão natureza/cultura, mente/corpo, sujeito/objeto sustenta esse movimento ao negar os limites do corpo, do mundo natural e dos sujeitos em atender as demandas de nosso modo de vida. Assim, nos sentimos limitados quando temos que ceder aos desejos e necessidades do corpo: quando precisamos dormir, comer alimentos mais nutritivos, quando ficamos doentes, quando menstruamos, quando engravidamos. Não porque esse processos em si sejam limitantes, mas porque vivemos em um mundo hostil ao tempo, hostil ao corpo biológico e hostil à natureza.

Nessa guerra constante entre os desejos de uma mente colonizada por imagens de sucesso, movimento, atividade, vigor, nos ressentimos de nossos corpos que não permitem que avancemos sem levar-lhes em consideração. Construiu-se a ideia do corpo como simples aparato que carrega a mente, o que se vê claramente nas escolas (e nas empresas), onde os alunos (e funcionários) são forçados a passar grande parte dos seus dias sentados, em total negligência para com seus corpos. Não é à toa que as aulas de dança são atividades extracurriculares na maioria das escolas. Mas não se pode negligenciar o corpo por muito tempo, e as campanhas opressivas de saúde garantem que se saiba disso. Repletos de medo de se ver punidos por esses corpos despóticos e vingativos, todos atentam para as recomendações médico-nutricionais sobre como ter uma vida saudável, evitando que seus corpos se rebelem em espasmos de doenças e cânceres. A completa alienação em relação ao corpo soma-se ao medo de seus descontroles.

A tendência atual à construção de corpos perfeitos e magros por meio de cirurgias estéticas, dietas restritivas e as mais diversas práticas corporais busca construir corpos que realizem desejos de sucesso, de amor, de status. Cria-se um corpo escravizado pelos desejos de uma mente que se vê como onipotente. Mas, ao mesmo tempo, esse é um corpo que protege, pois ergue muralhas, afasta; é um "corpo invólucro"¹, "um corpo como forma de limite rígido entre o sujeito e o mundo". Não é, contudo, um corpo que deseja, um corpo que vive. Um corpo vivente, na concepção de Nelson Coelho Júnior, "é um corpo no mundo, em relação. Um corpo que escapa, assim, do corpo dos limites, do corpo imaginado pelo sujeito moderno. [...] Com o desejo de construir um corpo eterno, construímos um corpo morto, sem desejo, vampirizado em sua potência vital. [...] Corpos mortos não sangram.

Partilho da visão de Merleau-Ponty, de que" [...] não estou diante de meu corpo, estou dentro de meu corpo, ou mais certamente sou meu corpo." Enquanto sou corpo, viver fragmentada, viver como mente e  alienada do corpo é estar fraturada. Menstruar é parte de mim. Eu sou meu corpo. Meu corpo sangra.


Se a visão é um questão do poder de ver, precisamos poder ver mais. Poder ver de perspectivas distintas, poder ver a nós mesmas com olhos que se permitem sangrar. Não deixemos que as nossas próprias visões sobre os nossos corpos e as nossas identidades nos sejam impostos por olhares exógenos. Devemos aprender a olhar, com liberdade, com criatividade. Para nos livrarmos das violências implícitas em nossas práticas de visualização, precisamos arrancar nossos próprios olhos e crescer uma nova visão.
 


Continua...

¹ "Corpo construído, corpo vivido e corpo desejante - considerações contemporâneas sobre a noção de corpo na psicanálise e na filosofia de Merleau-Ponty", de Nelson Coelho Júnior.