Este
é o quarto texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la.
Versão em inglês
Ao
buscar informações sobre a pílula na internet, o blog de
Holly Grigg-Spall, Sweetening the pill, foi um dos poucos lugares que encontrei onde o assunto era debatido de forma crítica e corajosa. Seu livro, Sweetening the Pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control [Dourando a pílula: ou como ficamos viciadas em contraceptivos hormonais - minha tradução], foi recentemente publicado. Eu
tive o prazer de lê-lo e acredito ser uma leitura essencial para todas as mulheres que buscam se empoderar e tomar decisões informadas sobre sua saúde e contracepção. Depois de ler seu livro, perguntei a Holly se poderia entrevistá-la e ela gentilmente aceitou.
P: Por que as histórias de tantas mulheres, seus sentimentos
negativos e reações à pílula, e os problemas de saúde que ela gera, são
tão comumente descartados como queixas isoladas?
R: Ao longo da história, foi dito às mulheres que seus problemas de saúde são "coisas de suas cabeças". Isso costumava ser chamado de histeria, agora é chamado de "o poder da sugestão". As mulheres são tratadas como se fossem histérica e como se elas estimulassem a histeria umas nas outras.Além disso, as mulheres frequentemente se queixam sobre os efeitos colaterais da pílula de forma isolada. No consultório de um médico ou em uma clínica de planejamento familiar, por exemplo. As mulheres não estão reclamando sobre os efeitos colaterais como um coletivo. Na
verdade, as mulheres parecem ser muito mais propensas a se culpar, a
culpar seus próprios corpos por não reagir da maneira correta ao medicamento, ou por não ser complacente com o medicamento, do que são propensas a culpar o próprio medicamento ou aquele que as encorajou a tomá-lo. Por
isso, elas muitas vezes não percebem sua experiência de efeitos colaterais
como uma experiência coletiva de muitas mulheres, embora, certamente, o seja.Vivemos em tempos muito conservadores. As pessoas têm dificuldade em questionar instituições como a indústria médica ou corporações como as empresas farmacêuticas. O
neoliberalismo do nosso tempo exige que vejamos a nós mesmos como agentes
livres, que se movem pelo mundo sem ser afetados pelas pressões sociais e
individualmente responsáveis por cada acontecimento em nossas vidas. O feminismo dominante atualmente dita que nos fixamos na Escolha. Portanto,
se você faz uma escolha que acaba por ser ruim para você e impactar
negativamente a sua vida, esse é um problema só seu.Em muitas outras áreas aceitamos as experiências dos indivíduos como válidas na maneira como eles explicam essas experiências. Por exemplo, se uma mulher trans diz que ela é uma mulher, nós aceitamos essa experiência como válida e a honramos como válida. Se
alguém diz que é intolerante ao glúten e que o glúten o deixa doente, nós aceitamos isso como válido e nos reorganizamos para admitir esta
experiência. No
entanto, estamos vendo que quando as mulheres detalham suas
experiências com contraceptivos hormonais, elas são dispensadas ou
silenciadas. Os contraceptivos hormonais estão tão atrelados à nossa ideologia que
até mesmo a honestidade é vista como uma ameaça ao status quo.
P: Por que, como você diz no livro, é tão difícil criticar a pílula hoje em dia?
R: A pílula é vista como sinônimo da libertação das mulheres e do progresso da mulher na sociedade ao longo das últimas décadas. Quando discutimos métodos contraceptivos, muitas vezes, na verdade, significa apenas "a pílula". Tornou-se uma panaceia para qualquer doença que afeta as mulheres. Chegamos a um ponto em que o estado natural da mulher é considerado inerentemente
doente (isto não nega o fato que algumas mulheres ficam doente por conta de sua biologia, mas não somos TODAS doentes porque somos mulheres, o que eu acredito que é a mensagem) .A crítica à pílula tem sido cooptada por grupos, como a direita religiosa,
que são, muitas vezes, anti-aborto, anti-sexo antes do casamento e
anti-contracepção como um todo. O movimento das mulheres tem permitido que essa conversa seja dominada. Isso
significa que quando nós criticamos a pílula, somos vistas como se estivéssemos fornecendo munição para o "outro lado ". Nos EUA, a contracepção está sendo ameaçada por certas
facções que aparentemente desejam tornar mais difícil para as mulheres obter conhecimento sobre e acesso à contracepção. Isso
fez com que a esquerda liberal feminista ficasse ainda mais zelosa em seu
entusiasmo pelos contraceptivos hormonais e menos aberta à
discussões honestas sobre questões de segurança - mesmo quando essas questões são extremamente sérias, por exemplo, a situação com Yaz/Yasmin e a formação de coágulos
sanguíneos.E
não devemos esquecer que a contracepção hormonal é uma
indústria de bilhões de dólares na qual as mulheres são pacientes que
compram medicamentos por muitos e muitos anos de suas vidas. Nós
não somos nada se não uma sociedade movida pelo corporativismo e isso desempenha um importante papel na maneira como
pensamos sobre a pílula. A capacidade de penetração da indústria farmacêutica dentro da indústria médica
e sua influência sobre os estudantes de medicina, médicos
e as próprias mulheres não deve ser subestimada.
P: Em sua pesquisa e durante sua própria experiência com a pílula, quais efeitos colaterais você descobriu que normalmente
não são mencionados no debate convencional e quais você acha que mais a afetaram pessoalmente?
R:
Eu acho que o impacto psicológico e emocional da pílula nas mulheres raramente é discutido com alguma seriedade. Existe muito pouca pesquisa contínua envolvendo grandes grupos de mulheres, seguidas por um longo período de tempo. Há muito pouca atenção às mulheres que relatam estas questões. Não
é apenas a depressão que precisa ser discutida, mas também a ansiedade e
a anedonia (incapacidade de desfrutar de atividades geralmente apreciadas). O
impacto pode se manifestar de várias maneiras, não necessariamente
apenas em um quadro clínico de depressão, e essas formas podem ser muito
prejudiciais para a qualidade de vida de uma mulher. Foram certamente esses problemas que me afetaram pessoalmente - ansiedade, ataques de pânico, anedonia, raiva. Além disso, o impacto negativo sobre a experiência sexual das mulheres não é discutido o suficiente. Não
só a libido reduzida como resultado da pílula, mas a falta de
lubrificação, reduzida intensidade de orgasmo, dor durante o ato
sexual e a probabilidade aumentada de infecções.
P: Nas discussões do dia a dia podemos ver que a contracepção tem sido, de
alguma forma, igualada à pílula e outros contraceptivos hormonais. O que você acha que contribuiu para isso?
R: O capitalismo. A contracepção hormonal gera muito dinheiro para algumas pessoas e se a
marca "a pílula " pode se tornar sinônimo de contracepção
como um todo, essas pessoas fizeram bem o seu trabalho. A contracepção hormonal nos tem sido empurrada como a ÚNICA opção, na verdade como a própria representante da Escolha. Além
disso, a indústria médica, sob o domínio da indústria farmacêutica,
apresenta os contraceptivos hormonais como a melhor opção para as
mulheres - seja para a contracepção ou para questões relacionadas ao ciclo menstrual. A camisinha é vista como útil apenas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, não como método
contraceptivo. Todas as outras opções são vistos como ineficazes, inconvenientes, intrusivas ou arcaicas.
P: Muitas pessoas são cuidadosas ao tomar medicamentos e ficam alertas para seus efeitos colaterais, mas quando se trata da pílula, não a consideram como uma possível causa de problemas de
saúde em mulheres que a estão tomando ou que já a tomaram. Como chegamos a não pensar na pílula como uma droga?
R: Nós a chamamos de "a pílula", como se fosse algo inócuo e inofensivo. Nós não pensamos nela como uma droga poderosa, ou como um produto médico. Por todas as razões mencionadas anteriormente, os contraceptivos hormonais têm dominado nossa conversa sobre contracepção. Tornou-se parte da vida moderna para as mulheres. Essencialmente, nossa cultura vê os corpos das mulheres como inerentemente doentes e defeituosos. A
pílula corrige os órgãos reprodutivos problemáticos até que eles sejam necessários para o ato socialmente útil de proporcionar uma gravidez. Vemos
nossos ciclos antes da gravidez como um incômodo, a causa da doença e
da dor, e eles são usados contra nós como indicação de nossa
inferioridade em relação aos homens. A pílula é entendida como algo que nos faz melhores. Melhores mulheres. É discutida quase como uma vacina contra o câncer, como a razão da igualdade conseguida pelas mulheres na sociedade, como a razão que as faz, hoje, trabalhar ao lado dos homens nas mais diferentes profissões, até como a razão pela qual as mulheres são felizes. Foi dado à pílula grande parte do crédito pelas conquistas das mulheres ao longo da história. A
pílula foi a primeira droga de estilo de vida e é uma porta de entrada que faz com que as mulheres vejam as intervenções médicas não como uma opção, mas como uma
necessidade em todos os estágios- menstruação, fertilidade, gravidez,
parto, menopausa.
P: Visto que, como você afirma, "a nossa relação com a pílula é
inseparável da nossa relação com a menstruação", o que você acredita estar por trás dessa tendência atual que incentiva as mulheres a
suprimir a menstruação e como isso está ligada à pílula?
R: A nossa relação com a menstruação está indissociavelmente ligada à nossa relação com a pílula. A pílula nos livra da menstruação e a substitui por sangramentos de escape. A pílula é prescrita para mulheres jovens para "tratar" os ciclos menstruais difíceis e "regular" os seus ciclos. Nossa
sociedade perpetua um tabu menstrual que liga a menstruação à
vergonha e, portanto, livrar-se dela é visto como algo positivo.
Somos informados de que não há razão médica para menstruar, o que não é verdade. Antes da proliferação dos contraceptivos hormonais a menstruação era vista como o quinto sinal vital de uma boa saúde.Vemos a menstruação como inconveniente, porque a nossa sociedade a torna inconveniente. Não é possível menstruar na praia, de férias. Não é possível tirar um tempo se você tem cólicas. Devemos estar ligadas e disponíveis, em todos os sentidos, em todos os momentos. Controlar
a menstruação é também uma extensão do controle de outros aspectos do
corpo feminino - sejam as flutuações de peso, ou os pelos das
pernas e das axilas.Grande
parte das justificativas para suprimir a menstruação com o uso de medicamentos remonta ao
trabalho do Dr. Coutinho [médico brasileiro] e ele estava intimamente envolvido com o desenvolvimento da injeção e do implante - a contracepção hormonal que agora gera um
monte de dinheiro. Parece que acreditamos que a ciência existe separadamente da nossa ideologia. Isso não é verdade, a ciência muitas vezes se propõe a provar o que é necessário provar.
P: Por que as reações à pílula masculina e feminina são tão diferentes, e por que a pílula masculina não foi tão
pesquisada e promovida quanto a pílula feminina?
R: Acredita-se que a pílula feminina está "tratando" um problema - a fertilidade e uma possível gravidez indesejada. A gravidez é, portanto, a doença e a pílula é o remédio ou cura. Já a pílula masculina acredita-se que seria uma droga que não está tratando diretamente um problema. Portanto,
os efeitos colaterais não serão tolerados, por parte da indústria
médica, ou pelos homens - a droga não é necessária e por isso um impacto
negativo é levado em consideração com mais seriedade. Os homens não engravidam. Não se considera que os homens também sofram as consequências de uma gravidez indesejada - consequências econômicas, sociais, de saúde também. Eles também podem sofrer consequências se sua parceira usa o contraceptivos hormonais e sofre efeitos colaterais.Esse debate mostra como nós, como uma sociedade, sentimos que a prevenção da
gravidez é responsabilidade da mulher e que os homens não têm qualquer
ligação intrínseca com a ocorrência de uma gravidez além do fornecimento
de esperma. Há muito misoginia entranhada no sistema médico. É
uma linha de pensamento presente em todas as outras
áreas da nossa sociedade - como vemos homens/pais em relação às
mulheres/mães. É
por isso que vemos os homens que cuidam de seus próprios filhos como "babás" e as mulheres que cuidam de seus filhos como desempenhando seu
papel correto e natural.
P: No livro, você sugere um interessante paralelo entre a aceitação da cesariana e da pílula pelas mulheres. Você poderia falar sobre isso brevemente?
R:
Como eu disse antes, a pílula é uma droga que funciona como porta de entrada, que faz com que as
mulheres considerem mais aceitáveis as constantes intervenções médicas às quais são submetidas ao longo dos diferentes estágios de suas vidas, incluindo a gravidez e o parto. Temos
uma abordagem padronizada à contracepção, à gravidez e ao nascimento,
porque é o método por meio do qual se faz mais dinheiro ou se economiza mais dinheiro de formas que beneficiam o sistema.Tratar o nascimento como um procedimento cirúrgico nem sempre é saudável para a mulher ou o bebê. Tratar TODOS os nascimentos como procedimentos cirúrgicos certamente não é do interesse de todas as mulheres. Da
mesma forma, tratar a fertilidade como uma doença e suprimir o
ciclo menstrual com drogas poderosas não é do melhor interesse de muitas mulheres.
Sim,
às vezes as drogas e, por vezes, a cirurgia são necessárias, mas não
devem ser vistas como um padrão de atendimento para qualquer situação.
P: Hoje em dia, existem empresas farmacêuticas que tentam desenvolver outra droga para tratar a falta de desejo sexual das mulheres. Qual visão de sexualidade feminina está implícita neste discurso que dá
apoio ideológico para o uso generalizado de contraceptivos hormonais?
R: Eu acredito que é uma visão que sugere que a quantidade é mais importante do que a qualidade. Enquanto
as mulheres estão tendo relações sexuais com frequência, enquanto os
homens também estão, então não importa se o sexo é realmente agradável. A
ideia é fornecer um medicamento que faz com que as mulheres "queiram" sexo
com mais frequência, com a compreensão de que mais sexo será equivalente a melhor sexo. Normalmente,
os estudos investigam quantas vezes um casal está fazendo sexo e
não como eles se sentem sobre o sexo que eles estão fazendo.Hugh
Hefner [fundador da Playboy] esperava que a pílula tornasse as mulheres mais
disponíveis sexualmente - pois acreditava-se que a principal razão pela qual uma mulher recusaria sexo seria porque ela estava com medo de engravidar - e mais "sexy". Sexy é exterior e não interior. É sobre as mulheres se comportarem de certa maneira para excitar os homens.Há uma pressão sobre homens e mulheres para querer e fazer sexo o tempo todo. Se você não está fazendo isso, então há algo errado com você que precisa ser corrigido. É
claro que por trás do desenvolvimento desta droga está o dinheiro, e muito
dinheiro vai ser feito se você considerar como é ampla a definição de disfunção
sexual atualmente e quão ampla pode se tornar no futuro. Nós todos poderíamos ser vistos como sexualmente disfuncionais e precisando ser medicados dentro de uma década.
P: O que significa para você ser feminista? Quais são as batalhas que se aproximam e quais são seus planos para o futuro?
R: O feminismo tem de deixar de ser um servo do capitalismo. Precisamos
parar de ver o sucesso das mulheres nos estreitos termos capitalistas de status corporativo e ganho econômico como a totalidade do movimento feminista. Eu não quero mais CEOs ridiculamente bem pagos que também são do sexo feminino. Eu quero que a desigualdade social seja abordada. Eu quero a redistribuição da riqueza que hoje está nas mãos de uns poucos. O feminismo deve ser sobre mudança social e revolução, não sobre expandir escolhas para as mulheres na economia de mercado. Eu
sou uma feminista, mas eu também sou um humanista, eu quero melhor qualidade de vida para homens e mulheres, para todos nós, porque
o que temos agora não é sustentável e é totalmente desumano. Chegamos a um ponto em que não acreditamos que haja uma alternativa, e que nós apenas temos que aceitar esse destino. O feminismo tradicional atualmente tem sido cooptado por aqueles
que preferem manter o status quo em vez de contestá-lo.
The bitter taste of hormonal contraceptives
This is the forth post in a series about the contraceptive pill and the reasons why I have decide to quit hormonal contraceptives. When trying to find honest information about the pill on the internet, Holly Grigg-Spall's blog Sweetening the Pill was one of the few places I could find that was really talking about it in a corageous and critical way. Her book, Sweetening the pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control, has recently been published. I had the pleasure of reading it and think it is a must read for women that really want to be informed and empowered to make decisions about their health and contraception. After reading the book, I asked Holly for an interview, which she gladly answered.
Versão em português
Q: Why are the stories of so many women, their negative feelings and reactions to the pill, the health problems that it generates so commonly dismissed as isolated complaints?
Versão em português
Q: Why are the stories of so many women, their negative feelings and reactions to the pill, the health problems that it generates so commonly dismissed as isolated complaints?
A:
Throughout history women have been told that their health problems are
"all in their heads." It used to be called hysteria, now it's called
"the power of suggestion" instead. Women are treated as though they are
hysterical and as though they even whip up hysteria in each other.
Also, women are often making these complaints
regarding side effects from the pill in isolation. At a doctor's office
or family planning clinic office for example. Women aren't complaining
about side effects as a collective. In fact, women seem to be far more
likely to blame themselves, to blame their own bodies for not reacting
in the right way to the drugs, or for not being compliant to the drugs,
than they are likely to blame the drugs themselves or those that
encouraged them to take those drugs. Therefore they often don't see
their experience of side effects as a collective experience of many
women, even though it certainly is that.
We live in highly conservative times. People find it
hard to question institutions like the medical industry or corporations
like pharmaceutical companies. The neoliberalism of our time dictates
that we see ourselves as free agents moving through the world unfettered
by social pressures and individually responsible for every occurrence
in our lives. Current mainstream feminism dictates that we fixate on
Choice. Therefore if you make a choice and it turns out to be bad for
you and negatively impact your life, that's your problem alone.
In many other areas we accept individual's
experiences as valid in the way they explain those experiences. For
example, if a transwoman says she's a woman, we accept this experience
as valid and honor it as valid. If someone says they are
gluten-intolerant and that gluten makes them sick, we accept that as
valid and reorganize to admit this experience. However, we are seeing
that when women detail their experiences with hormonal birth control
they are dismissed or silenced. Hormonal birth control is bound up in
our ideology so tight that even honesty is seen as a threat to the
status quo.
Q: Why, as you put it in the book, it is so hard, nowadays, to criticize the pill?
A:
The pill is seen as synonymous with women's liberation and the progress
of women in society through the last few decades. When we discuss
"birth control" we often actually mean just "the pill." It has become a
cure-all for any ailment that impacts women. We have got to a point that
women's natural state is thought inherently sick (this is not to deny
some women are made sick by their biology, but we are not ALL sick
because we are women, which I believe is the message).
Criticism of the pill has been co-opted by groups,
like the religious Right, that are all too often anti-abortion, anti-sex
before marriage, and anti-contraception as a whole. The women's
movement has allowed this conversation to be dominated. This means when
we criticize the pill we are seen as providing ammunition to "the other
side" as it were. In the US birth control is understood as under threat
by certain factions who seemingly desire to make it difficult for women
to obtain knowledge of contraception and access to contraception. This
has made the feminist, liberal Left even more zealous in their
enthusiasm for hormonal birth control and even less open to honest
discussion about safety issues - even when they are gravely serious, for
example the situation with Yaz/Yasmin and blood clots.
And we mustn't forget that hormonal birth control is
a billion dollar industry within which women are patients buying drugs
for many, many years of their lives. We are nothing if not a
corporate-driven society these days and so this plays a huge factor in
how we think about the pill. The pervasive reach of the pharmaceutical
industry within the medical industry, and its influence on medical
students, practicing doctors, and women themselves should not be
underestimated.
Q: In your research and during your own experience
trying to quit the pill, what side effects have you discovered that are
not usually mentioned in the mainstream debate and which ones do you
think most affected you personally?
A: I think the impact of the pill psychologically
and emotionally for women is rarely discussed with any seriousness.
There is far too little solid research involving large groups of women
followed over a long period of time. There is far too little attention
paid to women who report these issues. It's not just depression that
needs to be discussed, but also anxiety and anhedonia (the inability to
enjoy activities usually enjoyed). The impact can show itself in many
ways, not necessarily just a clinical state of depression, and those
ways can be very damaging to a woman's quality of life. It was certainly
these problems that affected me personally - anxiety, panic attacks,
anhedonia, rage. Also perhaps the negative impact on women's experience
of sex is not discussed enough. Not only lowered libido as a result of
the pill, but lack of lubrication, lowered intensity of orgasm, pain
during sex, and the heightened likelihood of infection.
Q: In day to day discussions we can see that
contraception has, somehow, been equated to the pill and other forms of
hormonal birth control. What do you believe has contributed to that?
A: Capitalism. Hormonal birth control makes a few people a lot of
money and if the brand "the Pill" can become synonymous with birth
control as a whole they've done their jobs well. Hormonal birth control
has been pushed as the ONLY choice, in fact representative of Choice
itself. Also the medical industry, under the thumb of the pharmaceutical
industry presents hormonal birth control as the best option for women -
whether that's for contraception or cycle issues. Condoms are seen as
only useful for prevention of transmission of STIs, not as
contraception. All other options are viewed as ineffective, messy,
obtrusive, or archaic.
Q: We are normally caution about taking prescription
drugs and wary of their side effects, but when it comes to the pill, it
is never considered as a possible cause of health problems in women
that are taking it or have taken it. How have we come not to think of
the pill as a drug?
A: We call it "the Pill" as though it were innocuous
and harmless. We don't think of it as a powerful drug or as a medical
product. For all the reasons mentioned before, hormonal birth control
has dominated our contraception conversation. It has become part of
modern life for women. Essentially we see women's bodies, as a culture,
to be inherently sick and faulty. The pill fixes the troublesome
reproductive organs until they are needed for the socially useful act of
providing a pregnancy. We see our cycles prior to pregnancy as a
nuisance, the cause of sickness and pain, and they are used against us
as indication of our inferiority to men. The pill is understood to make
us BETTER. Better women. It is discussed almost as a cancer-vaccine, as
the reason for women gaining equality in society, as the reason for them
working alongside men in careers, as the reason they are happy even. It
has been given a whole lot of credit for women's achievements through
history. The pill was the first lifestyle drug and it is a gateway drug
that opens women up to seeing medical intervention as not an option but a
necessity at every point - menstruation, fertility, pregnancy, birth,
menopause.
Q: Since, as you stated, “our relationship to the
pill is inseparable from our relationship to menstruation”, what do you
believe is behind this current trend that encourages women to suppress
menstruation and how is it connected to the pill?
A: Our relationship to menstruation is inextricably
linked to our relationship to the pill. The pill gets rid of periods and
replaces them with withdrawal bleeds. Young women are prescribed the
pill to "treat" difficult menstrual cycles and "regulate" their periods.
Our society perpetuates a menstrual taboo that links menstruation to
shame and therefore getting rid of periods is seen as a positive. We are
told there's no medical reason to have a period, which is untrue. Prior
to the proliferation of hormonal birth control menstruation was seen as
the fifth vital sign of good health.
We see menstruation as inconvenient because our
society makes it inconvenient. It is not possible to have your period at
the beach on vacation. It is not possible to take time out if you have
cramps. We must be on, and available, in all ways, at all times.
Controlling menstruation is also an extension of controlling other
aspects of the female body - be that weight fluctuations, or hair on
legs and armpits.
Much of the justifications for skipping periods with
drugs goes back to the work of Dr Coutinho and he had ties to the
development of the shot and the implant - hormonal birth control that
now makes a lot of money. We seem to feel science exists separately from
our ideology. This is not true, science too often sets out to prove
what is necessary to prove.
Q: Why our reactions towards male and female pill
are so drastically different, and why hasn’t the male pill been as
researched and promoted as the female pill?
A:
It is believed that the female pill is "treating" an issue - fertility
and possible unwanted pregnancy. Pregnancy is therefore the illness and
the pill is the medicine or cure. With the male pill it is believed this
would be a drug that is not directly treating an issue. Therefore side
effects will not be tolerated, by the medical industry, or by men - the
drug is not needed and so a negative impact is viewed as more important a
consideration. Men do not get pregnant. It is not considered that men
also have consequences from unwanted pregnancies - economic, social,
health too. They may also have consequences if their partner uses
hormonal birth control and suffers side effects.
The conversation shows how we as a society feel
pregnancy prevention is a woman's responsibility and that men do not
have any intrinsic connection to the occurrence of a pregnancy beyond
providing sperm. There's much misogyny ingrained in the medical system.
It's a line of thought too often carried through in all other areas of
our society - how we view men/fathers in relation to women/mothers. It's
why we see men taking care of their own children as "babysitting" and
women taking care of their children as doing their natural, right role.
Q: In the book, you suggest an interesting parallel
between women’s acceptance of the cesarean and of the pill. Could you
talk about it briefly?
A: As I said before, the
pill is a gateway drug that opens up women to being more accepting of
constant medical intervention through the stages all of their lives,
including pregnancy and birth. We have a one-size-fits-all approach to
contraception and to pregnancy and birth because it is the method by
which the most money is made or saved in ways that benefit the system.
Treating birth as surgery is not always healthy for
the woman or her baby. Treating ALL birth as surgery is certainly not in
the best interests of all women. Similarly treating fertility as an
illness and suppressing the cycle with powerful drugs is not in many
women's best interests. Yes, sometimes drugs and sometimes surgery is
needed, but it should not be seen as a standard of care for either
situation.
Q: Nowadays, there are pharmaceutical companies
trying to develop another drug that will address women’s lack of sexual
desire. What vision of female sexuality is implicit in this discourse
that gives ideological backing for the widespread use of hormonal
contraceptives?
A: I believe it is a view that suggests quantity is
more important than quality. As long as women are having sex frequently,
as long as men are too, then it doesn't matter whether the sex is
actually enjoyable. The idea is to provide a drug that makes women
"want" sex more with the understanding that more sex will equal better
sex. Usually studies rest on how many times a couple is having sex not
how they feel about the sex that they are having.
Hugh Hefner hoped that the pill would make women
more sexually available - because it was believed that the main reason a
woman would refuse sex is because she was fearful of pregnancy - and
more "sexy." Sexy is exterior, not interior. It is about women behaving
in certain a way to arouse men.
There is a pressure on both men and women to want
and have sex all of the time. If you are not doing this then there is
something wrong with you that needs to be fixed. Of course behind the
development of this drug is money, and much is to be made if you
consider how broad the definition of sexual dysfunction is currently and
could become. We could all be seen as sexually dysfunctional and in
need of drugs within a decade.
Q: What does it mean for you to be a feminist? What are the battles that lie ahead, and what are your own plans for the future?

Entre tragadas e enganações
Terceiro texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la.
No indispensável documentário da BBC The century of the self, quatro episódios narram a história da apropriação da teoria de Freud pela publicidade e a política nos Estados Unidos. Começa com a trajetória do sobrinho de Freud, Edward Bernays, que leva as ideias psicanalíticas, em especial a de que as ações dos seres humanos têm motivações inconscientes, para o campo da publicidade. Até aquele momento, a propaganda era baseada, principalmente, nos fatos, nas propriedades e qualidades concretas dos produtos: como a durabilidade e resistência dos eletrodomésticos. O que Bernays fez, com grande sucesso, foi abandonar os fatos, enfatizando os sentimentos inconscientes que um produto poderia suscitar. Embora pouco se fale em Bernays, ele foi o principal responsável pelas mudanças que fazem com que, hoje, o consumo esteja associado à anseios e desejos, em oposição às necessidades.
Curiosamente, seu primeiro triunfo veio durante a década de 1920, ao convencer as mulheres a fumar.
Ao tentar entender porque as mulheres não fumavam, percebeu que elas viam o cigarro como um símbolo fálico, representante do poder masculino e, por isso, sentiam ser impróprio para uma mulher fumar. Bernays contratou, então, um grupo de mulheres para se passar por sufragistas em uma passeata, onde foram orientadas a tragar poderosamente em frente aos repórteres, se refererindo aos cigarros como "tochas da liberdade". Com essa manobra, Bernays conseguiu transformar o cigarro em um símbolo do movimento feminista e do direitos das mulheres, e desde então, as tragadas de milhões de mulheres vêm trazendo sentimentos de liberdade e emancipação, para depois culminar em cânceres, derrames e morte. Ao se aproveitar da ânsia das mulheres por autonomia, o cigarro passou a ser um paliativo assassino, em muitos casos a única mudança efetiva nas vidas de muitas donas de casa, que demoraram a ver ganhos reais em termos de oportunidades e conquistas.
Outro golpe publicitário veio com o desenvolvimento das misturas para bolo na década de 1940. Embora tenha sido pensado para facilitar a vida das donas de casa, as mulheres não estavam comprando o produto. Psicanalistas concluíram que as mulheres sentiam que não estavam tendo nenhum trabalho ao fazer o bolo instantâneo, e se sentiam envergonhadas em servir algo tão simples para seus maridos. A resposta era simples: bastava incluir um ovo na mistura. Assim, a prendada cozinheira poderia sentir que contribuiu de alguma forma para a receita. Com essa simples e maquiavélica mudança, as vendas foram alavancadas.
Esses dois exemplos servem para ilustrar o início de um processo que atualmente faz parte do nosso cotidiano. Já naturalizamos os apelos que nos invadem e se apropriam de nossos desejos de felicidade, amor, status e poder. Mas como nada é simples, o oposto benéfico das propagandas de cigarros que se entranham em nossos inconscientes não são as bizarras campanhas terroristas no verso dos maços, com fotos de fetos e pulmões lamacentos. Muito menos as proibições do estado, visando cortar os gastos públicos na área da saúde.
No filme Sem fôlego (Blue in the face), há uma cena em que Jim Jarmush (diretor independente norte-americano) conversa sobre cigarros com Auggie (Harvey Keitel).
Acho que muita gente começou a fumar porque foi glamourizado nos filmes de Hollywood. Você vê Marlon Brando, vê James Dean fumando um cigarro. Marlene Dietrich.
[...] Agora, você vai para Hollywood...Eles nos viciaram em cigarros. Você sabe, essa imagem de glamour. Você vai lá e não pode mais fumar em nenhum lugar. Se fumar depois de uma refeição, em um restaurante, ele vêm e dizem: fumar é proibido por lei em restaurantes, senhor...Eles que começaram, sabe...
Na sequência, Lou Reed fala para a câmera, em sua imensurável sabedoria...
Sim, estou fumando cigarros, muitos amigos meus morreram disso. Por outro lado, enquanto eu estou fumando cigarros, eu não estou entornando uma garrafa de uísque em 15 minutos. Assim, vendo desse ponto de vista, é uma escolha saudável.
Essa relativização das escolhas individuais é de extrema importância para as mulheres, especialmente no que toca o uso da pílula. A liberdade não é um conceito absoluto e universal. A liberdade é contextual, contingente, mutante e escorregadia. Comecei esse texto com a história da introdução do cigarro na vida das mulheres porque ela não é muito diferente, em sua essência, da história da introdução da pílula anticoncepcional.
Quando digo que deixar de tomar a pílula foi uma escolha libertadora, falo de uma posição muito específica: a posição de uma mulher que não sofre ameaças de violência conjugal, que vive em uma cidade cosmopolita com acesso a recursos diversos, que conhece métodos contraceptivos seguros, não só em termos de eficiência, mas também em termos de efeitos colaterais a curto e longo prazo. Falo de um lugar de onde me é permitido fazer uma aposta de liberdade, mas tenho plena consciência de que esse não é o contexto de muitas mulheres. Vivemos lutas antigas, contra violências que vão desde o assédio nas ruas e no trabalho, até o estupro e o assassinato. Em cada realidade, uma escolha significa liberdade. Para mulheres em contextos de opressão, com valores religiosos retrógrados ou companheiros abusivos, não há espaço para se pedir o uso da camisinha, ou para colocar o diafragma. Em certas situações, a castração química é um mal menor. Significa a única possibilidade de controle.
Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação da pílula pelas mulheres foi uma manobra tão elaborada quanto a que alçou o cigarro à ícone feminista.
Antes do desenvolvimento da pílula, eram inúmeros os métodos contraceptivos disponíveis: desde os menos interessantes, como a abstinência, passando por aleitamento prolongado, esponjas embebidas em diferentes substâncias, plantas, métodos de monitoramento (com e sem instrumentos) das épocas férteis do ciclo, diafragma, DIU, camisinha etc. Mas todos essas opções existiam em uma atmosfera ainda regida por valores vitorianos, que cercavam de conservadorismo tudo que era relacionado ao sexo. Muitas farmácia não vendiam contraceptivos até o final da década de 1950 e, mesmo assim, tinham a venda restrita aos clientes que eram comprovadamente casados. Com a revolução sexual da década de 1960, os métodos contraceptivos se tornaram mais disponíveis.
A pílula foi aprovada para uso em 1960, causando uma mudança massiva no tipo de contracepção usado, com as mulheres assumindo maior responsabilidade pela contracepção. Ao mesmo tempo, a atitude dos médicos em relação à contracepção mudou drasticamente; antes relutantes em relação à contracepção, ao serem agraciados com o poder de prescrever a pílula, mudam rapidamente de posição.
Como com os cigarros, a pílula foi vendida, desde o início, como uma droga segura, que não trazia riscos à saúde. Mas não demorou para que as pílulas com altas dosagens de hormônios, disponíveis até 1975, fossem associadas à formação de coágulos responsáveis por derrames, amputações e mortes. Foi necessário muita pressão de médicos e consumidores para que esses riscos fossem reconhecidos e incluídos na bula.
Desde então, as pílulas de nova geração vêm sendo desenvolvidas, visando diminuir as dosagens de hormônios e os efeitos colaterais. Mas essas "novas" pílulas ainda trazem efeitos consideráveis, muitos deles cumulativos, resultado do desequilíbrio nutricional crônico causado pelo uso prolongado da pílula. E, ao contrário do que se esperaria, estudos têm mostrado que elas, na verdade, aumentam o risco de formação de coágulos, especialmente aquelas que contêm drosperinona, como Yaz e Yasmin, suspeitas de causar a morte de 23 mulheres no Canadá, neste ano.
A história é essencial para nos lembrar das negações, embustes, fraudes, manobras e apropriações que causaram tantas mortes em nome dos lucros de uma minoria; para que não nos esqueçamos que a banalidade do mal, como coloca Hannah Arendt, se vale do aval ou da alienação da grande maioria da população, que, ao se demitir de pensar, consentem às mais imperdoáveis atrocidades.
continua...
No indispensável documentário da BBC The century of the self, quatro episódios narram a história da apropriação da teoria de Freud pela publicidade e a política nos Estados Unidos. Começa com a trajetória do sobrinho de Freud, Edward Bernays, que leva as ideias psicanalíticas, em especial a de que as ações dos seres humanos têm motivações inconscientes, para o campo da publicidade. Até aquele momento, a propaganda era baseada, principalmente, nos fatos, nas propriedades e qualidades concretas dos produtos: como a durabilidade e resistência dos eletrodomésticos. O que Bernays fez, com grande sucesso, foi abandonar os fatos, enfatizando os sentimentos inconscientes que um produto poderia suscitar. Embora pouco se fale em Bernays, ele foi o principal responsável pelas mudanças que fazem com que, hoje, o consumo esteja associado à anseios e desejos, em oposição às necessidades.
Curiosamente, seu primeiro triunfo veio durante a década de 1920, ao convencer as mulheres a fumar.
Ao tentar entender porque as mulheres não fumavam, percebeu que elas viam o cigarro como um símbolo fálico, representante do poder masculino e, por isso, sentiam ser impróprio para uma mulher fumar. Bernays contratou, então, um grupo de mulheres para se passar por sufragistas em uma passeata, onde foram orientadas a tragar poderosamente em frente aos repórteres, se refererindo aos cigarros como "tochas da liberdade". Com essa manobra, Bernays conseguiu transformar o cigarro em um símbolo do movimento feminista e do direitos das mulheres, e desde então, as tragadas de milhões de mulheres vêm trazendo sentimentos de liberdade e emancipação, para depois culminar em cânceres, derrames e morte. Ao se aproveitar da ânsia das mulheres por autonomia, o cigarro passou a ser um paliativo assassino, em muitos casos a única mudança efetiva nas vidas de muitas donas de casa, que demoraram a ver ganhos reais em termos de oportunidades e conquistas.
Outro golpe publicitário veio com o desenvolvimento das misturas para bolo na década de 1940. Embora tenha sido pensado para facilitar a vida das donas de casa, as mulheres não estavam comprando o produto. Psicanalistas concluíram que as mulheres sentiam que não estavam tendo nenhum trabalho ao fazer o bolo instantâneo, e se sentiam envergonhadas em servir algo tão simples para seus maridos. A resposta era simples: bastava incluir um ovo na mistura. Assim, a prendada cozinheira poderia sentir que contribuiu de alguma forma para a receita. Com essa simples e maquiavélica mudança, as vendas foram alavancadas.
Esses dois exemplos servem para ilustrar o início de um processo que atualmente faz parte do nosso cotidiano. Já naturalizamos os apelos que nos invadem e se apropriam de nossos desejos de felicidade, amor, status e poder. Mas como nada é simples, o oposto benéfico das propagandas de cigarros que se entranham em nossos inconscientes não são as bizarras campanhas terroristas no verso dos maços, com fotos de fetos e pulmões lamacentos. Muito menos as proibições do estado, visando cortar os gastos públicos na área da saúde.
No filme Sem fôlego (Blue in the face), há uma cena em que Jim Jarmush (diretor independente norte-americano) conversa sobre cigarros com Auggie (Harvey Keitel).
Acho que muita gente começou a fumar porque foi glamourizado nos filmes de Hollywood. Você vê Marlon Brando, vê James Dean fumando um cigarro. Marlene Dietrich.
[...] Agora, você vai para Hollywood...Eles nos viciaram em cigarros. Você sabe, essa imagem de glamour. Você vai lá e não pode mais fumar em nenhum lugar. Se fumar depois de uma refeição, em um restaurante, ele vêm e dizem: fumar é proibido por lei em restaurantes, senhor...Eles que começaram, sabe...
Na sequência, Lou Reed fala para a câmera, em sua imensurável sabedoria...
Sim, estou fumando cigarros, muitos amigos meus morreram disso. Por outro lado, enquanto eu estou fumando cigarros, eu não estou entornando uma garrafa de uísque em 15 minutos. Assim, vendo desse ponto de vista, é uma escolha saudável.
Essa relativização das escolhas individuais é de extrema importância para as mulheres, especialmente no que toca o uso da pílula. A liberdade não é um conceito absoluto e universal. A liberdade é contextual, contingente, mutante e escorregadia. Comecei esse texto com a história da introdução do cigarro na vida das mulheres porque ela não é muito diferente, em sua essência, da história da introdução da pílula anticoncepcional.
Quando digo que deixar de tomar a pílula foi uma escolha libertadora, falo de uma posição muito específica: a posição de uma mulher que não sofre ameaças de violência conjugal, que vive em uma cidade cosmopolita com acesso a recursos diversos, que conhece métodos contraceptivos seguros, não só em termos de eficiência, mas também em termos de efeitos colaterais a curto e longo prazo. Falo de um lugar de onde me é permitido fazer uma aposta de liberdade, mas tenho plena consciência de que esse não é o contexto de muitas mulheres. Vivemos lutas antigas, contra violências que vão desde o assédio nas ruas e no trabalho, até o estupro e o assassinato. Em cada realidade, uma escolha significa liberdade. Para mulheres em contextos de opressão, com valores religiosos retrógrados ou companheiros abusivos, não há espaço para se pedir o uso da camisinha, ou para colocar o diafragma. Em certas situações, a castração química é um mal menor. Significa a única possibilidade de controle.
Contudo, é preciso ter em mente que a aceitação da pílula pelas mulheres foi uma manobra tão elaborada quanto a que alçou o cigarro à ícone feminista.
Antes do desenvolvimento da pílula, eram inúmeros os métodos contraceptivos disponíveis: desde os menos interessantes, como a abstinência, passando por aleitamento prolongado, esponjas embebidas em diferentes substâncias, plantas, métodos de monitoramento (com e sem instrumentos) das épocas férteis do ciclo, diafragma, DIU, camisinha etc. Mas todos essas opções existiam em uma atmosfera ainda regida por valores vitorianos, que cercavam de conservadorismo tudo que era relacionado ao sexo. Muitas farmácia não vendiam contraceptivos até o final da década de 1950 e, mesmo assim, tinham a venda restrita aos clientes que eram comprovadamente casados. Com a revolução sexual da década de 1960, os métodos contraceptivos se tornaram mais disponíveis.
A pílula foi aprovada para uso em 1960, causando uma mudança massiva no tipo de contracepção usado, com as mulheres assumindo maior responsabilidade pela contracepção. Ao mesmo tempo, a atitude dos médicos em relação à contracepção mudou drasticamente; antes relutantes em relação à contracepção, ao serem agraciados com o poder de prescrever a pílula, mudam rapidamente de posição.
Como com os cigarros, a pílula foi vendida, desde o início, como uma droga segura, que não trazia riscos à saúde. Mas não demorou para que as pílulas com altas dosagens de hormônios, disponíveis até 1975, fossem associadas à formação de coágulos responsáveis por derrames, amputações e mortes. Foi necessário muita pressão de médicos e consumidores para que esses riscos fossem reconhecidos e incluídos na bula.
Desde então, as pílulas de nova geração vêm sendo desenvolvidas, visando diminuir as dosagens de hormônios e os efeitos colaterais. Mas essas "novas" pílulas ainda trazem efeitos consideráveis, muitos deles cumulativos, resultado do desequilíbrio nutricional crônico causado pelo uso prolongado da pílula. E, ao contrário do que se esperaria, estudos têm mostrado que elas, na verdade, aumentam o risco de formação de coágulos, especialmente aquelas que contêm drosperinona, como Yaz e Yasmin, suspeitas de causar a morte de 23 mulheres no Canadá, neste ano.
A história é essencial para nos lembrar das negações, embustes, fraudes, manobras e apropriações que causaram tantas mortes em nome dos lucros de uma minoria; para que não nos esqueçamos que a banalidade do mal, como coloca Hannah Arendt, se vale do aval ou da alienação da grande maioria da população, que, ao se demitir de pensar, consentem às mais imperdoáveis atrocidades.
continua...
A castração química e o medo do escuro
Segundo episódio da série Tudo o que descobri sobre a pílula e porque decidi não tomá-la.
Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.
Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).
Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.
Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.
O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis.
O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida: alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.
Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.
Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.
Para mim, é muito claro que os métodos hormonais de contracepção são métodos de castração química, de anulação do ciclo menstrual, de não aceitação de uma fertilidade que passou a ser construída como patológica. E o problema mais grave é que nosso ciclo não está só relacionado com nossa fertilidade, com a função reprodutiva, mas com nossa saúde geral e com a plena potência do corpo feminino para atuar no mundo, com sua libido, com seus desejos.
Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.
Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.
Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.
Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário.
Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.
Continua...
Não vemos as coisas como elas são: as vemos como nós somos.
Anaïs Nin
A decisão de parar de tomar a pílula não veio assim, de uma grande coragem e uma intuição clara, às quais cedi sem conflitos. Sendo uma mulher moderna, com mentalidade científica e extremamente racional, não conseguiria seguir meus instintos sem algum tipo de apoio teórico, de evidências que embasassem minhas suspeitas. Não naquele momento, pelo menos. Em parte, minha incapacidade emocional de tomar qualquer decisão que não compreendesse racionalmente, me obrigou a mergulhar em um mundo até então inexplorado, do qual eu não era nativa. Para conseguir fazer sentido de tudo isso, me afundei em uma pilha de leituras fascinantes. E o que eu não podia compreender era como todo esse conhecimento esteve escondido de mim por tantos anos. Nunca me falaram disso na escola, nem em casa, nem na faculdade, nem nas revistas femininas, nem na televisão. Hoje me é muito claro porque tudo isso permanece em um terreno ao qual poucos têm acesso. Mas esse é assunto para outro momento...
Inicialmente, ainda focada nas questões de sáude, nos meus exames alterados, busquei compreender os efeitos da pílula sobre o meu corpo; entender exatamente como ela funcionava. Por incrível que pareça, e me envergonho disso (especialmente pelo fato de ser bióloga), percebi que sabia muito pouco sobre os métodos contraceptivos que existem: sua forma de atuação, seus efeitos colaterais a curto e a longo prazo, a história do seu desenvolvimento e, principalmente, o tipo de relacionamento com o corpo que cada método permite ou incentiva.
Sempre tive a mania inconveniente (para os médicos, pelo menos), de abrir todos os meus exames e buscar na internet ou em livros informações sobre os resultados que recebia, as doenças de que suspeitava, os efeitos dos remédios que tomava. Embora os médicos sejam unânimes em condenar esse tipo de comportamento, hoje faço apologia a ele, e à autonomia e poder de decisão dos pacientes em relação a sua própria saúde. E, embora a internet possa ser um campo perigoso e de muita desinformação, acaba por tornar menos hierárquica a relação entre os médicos e os pacientes - é o mesmo que vem acontecendo nas escolas, para grande receio dos professores.
Eu continuava com minha inconveniência durante as consultas, com todas as perguntas possíveis e imagináveis sobre fisiologia e a forma de atuação dos medicamentos; ou com indagações sobre as razões para a prescrição de determinada dieta, vitamina ou procedimento. Por mais que fosse plenamente capaz de compreender os intrincados mecanismos do corpo, as interações de hormônios, as funções de cada órgão, sempre era dispensada com meias explicações e discursos obscuros, como se ninguém fosse capaz de compreender os complicadíssimos diagnósticos a que os brilhantes médicos chegavam depois de passar por décadas de estudos e treinamento. Quem era eu para tentar compreender? Como ousas questionar os desígnios de seu Médico? Aquele que sabe, aquele que vê. Percebi que a síndrome de House (SHO) - doença daquele médico "brilhante" do seriado, que sempre sabe mais do que qualquer paciente, não só sobre as suas doenças, mas sobre as suas mentiras e mais do que isso, sobre o que é melhor para eles - é uma doença perigosa, contagiosa e muito prevalente entre os médicos. (Tenho certeza que acabo de entrar na lista negra dos pronto-socorros de São Paulo; quicá do Brasil).
Descobri o valor da internet livre nesse época. E percebi também que, infelizmente, pode-se viver com pleno acesso à internet sem tirar nenhum proveito dela, ao usá-la de forma tímida, conservadora, buscando as mesmas autoridades, as mesmas mídias; lendo os portais tradicionais, se mantendo submisso às velhas fontes de (des)informação que dominam o rádio, a TV e a imprensa brasileira de forma geral. Mas, por sorte, sabia como fugir disso. Sabia que para achar o que precisava não bastava procurar por "efeitos colaterais da pílula", não bastava ir às fontes de informação oficial, aos sites de órgãos do governo. Tinha que arriscar ouvir as vozes que ninguém mais queria ouvir. As vozes que diziam o que eu queria dizer mas não podia, que falavam sobre o que eu sentia. As vozes que viam o mundo da mesma forma que eu. Por que o discurso dominante, o consenso assassino, é o que há uma verdade sobre as coisas; que as coisas são como elas são. E se há uma forma de acessar a essência dos fenômenos do mundo, essa forma é a Ciência. E todas as verdades que a Ciência descobriu foram bem divulgadas e estão disponíveis, ao acesso de todos.
Em parte, o ensino de Ciências, da forma como é feito hoje, contribui muito para que se aceite as descobertas científicas como dogmas, revelados por cientistas iluminados - geralmente homens do hemisfério Norte.
Nessa busca pelos becos obscuros da internet, descobri dois livros que falam de forma aprofundada sobre os efeitos da pílula e sobre como seria possível regular os hormônios, conseguir contracepção segura, eficiente e prática sem ela. Infelizmente os dois ainda não foram traduzidos para o português, mas pretendo falar sobre os pontos mais importantes deles aqui no blog. Para quem lê em inglês, sugiro dar um espiada nos trechos que estão disponíveis para acesso grátis.
O primeiro livro se chama The pill: are you sure it's for you? (A pílula: tem certeza que é para você?). Nesse livro, descobri a real lista dos efeitos colaterais da pílula, com indicações de diversos estudos científicos e relatos de tantas mulheres que sofreram os efeitos de depressão, perda de libido, mudanças de humor, aumento de peso, osteoporose, enxaquecas, trombose, fadiga crônica, câncer de mama, câncer de colo de útero, infertilidade, deficiências nutricionais e como eu já esperava, alterações nos níveis de colesterol e triglicérides. Mas como? Meu médico só havia me perguntado se eu fumava? A pílula não trazia riscos só para as mulheres fumantes, com mais de 35 anos? Não me haviam perguntado se eu aceitava esses riscos. Afinal, é tudo uma relação entre os riscos e os benefícios, não é? Com as informações que eu tinha agora, os riscos se mostravam cada vez menos aceitáveis e os benefícios bastante questionáveis.
O segundo livro se chama Balance your hormones, balance your life: achieving optimal health and wellness through Ayurveda, Chinese Medicine, and Western Science (Equilíbre seus hormônios, equilibre sua vida: alcançando saúde e bem-estar através da Ayurveda, da Medicina Chinesa e da Ciência Ocidental). (PS: Sim, sou adepta de abordagens holísticas, e não só em relação à saúde). Nesse livro as noções de sáude das medicinas orientais são mescladas à ciência moderna de uma forma bastante inovadora. Sugiro que os dois livros sejam lidos em conjunto, para quem se interessar.
Pretendo trazer mais informações desses dois livros em outros momentos, mas por ora deixo as indicações.
Não se enganem. Eu tinha medo do meu corpo, tinha pavor de ser deixada sozinha no mesmo quarto com ele, especialmente na TPM ou naqueles dias de cólica intensa. Tinha medo da acne, tinha medo de quem eu podia ser sem a pílula. A pílula é uma droga de estilo de vida, é a droga que tomei para ser uma mulher responsável, em controle do meu corpo. Eu era a primeira a exaltar a pílula como a responsável pela autonomia das mulheres, como grande conquista do movimento feminista. Tomá-la fazia parte da minha rotina há 9 anos. Tinha começado a tomá-la antes de ter ideia de quem eu era; de como meu corpo funcionava. Quem seria eu, sem a pílula? Não bastava simplesmente deixar de tomá-la, não era só uma decisão prática. Era o começo de uma reinvenção da minha identidade enquanto mulher. Era a mudança de uma lógica de controle autoritário sobre o meu corpo, para uma lógica de comunicação, aceitação e carinho.
Era a superação de uma lógica masculina, de dominação, conquista, força e controle, para uma lógica feminina, de diálogo, diversidade, aceitação, fluxo, interação, cooperação. Essa não era uma simples escolha individual; era uma ação política.
Não conheço nenhuma mulher -
virgem, mãe, lésbica, casada, celibatária, tire ela seu sustento como
dona de casa, garçonete de festas ou técnica de tomografia cerebral -
para quem o próprio corpo não seja um problema fundamental: seus
significados encobertos, sua fertilidade, seu desejo, sua assim chamada
frigidez, seu discurso sangrento, seus silêncios, suas mudanças e
mutilações, suas violações e maturações. Existe hoje, pela primeira vez,
a possibilidade de converter nossa fisicidade ao mesmo tempo em
conhecimento e poder.
Adrienne Rich - Of woman born: motherhood as experience and institution (Do nascimento da mulher: maternidade como experiência e instituição). Trecho citado no livro A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução, de Emily Martin. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 31.
A questão era se alguma mulher iria tomar uma pílula todo dia para prevenir-se da gravidez. Eles acreditam que ninguém vai fazer isso; não quando nem estão doentes, e elas não estão doentes.
James Balog, Merck Pharmaceuticals (The doctor's case against the pill, Barbara Seaman)
Se a questão era que as mulheres não estavam doentes para tomar uma pílula, bastava reavivar antigos fantasmas da fragilidade constitutiva das mulheres. Bastava patologizar seu ciclo reprodutivo.
[...] "A mulher do século XIX é uma eterna doente", escreve Yvone Knibiehler:
A medicina da Luzes apresenta as etapas da vida feminina como [uma sucessão de] crises temíveis, independentemente de qualquer patologia. Além da gravidez e do parto, a puberdade e a menopausa constituíam também, a partir de então, provocações mais ou menos perigosas; e as menstruações, feridas dos ovários, abalam, diz-se, o equilíbrio nervoso. Todas as estatísticas provam, com efeito, que as mulheres sofreram, no século XIX, de uma morbidez e uma mortalidade superior às dos homens. A opinião pública e numerosos médicos incriminam a 'fraqueza' da 'natureza feminina': causa biológica eterna e universal, que se arriscava a alimentar um fatalismo insuperável.
Desclocamentos do Feminino, de Maria Rita Kehl. Citação do livro Corpos e corações, de Yvone Knibiehler.
Vivi por muito tempo atormentada pelos fantasmas dessa construção do corpo da mulher como um corpo falho, defeituoso em sua essência. Mas começava a acreditar que não estava doente. Contudo, isso não era suficiente para aniquilar o medo que ainda tinha do meu próprio corpo. Medo que teria que enfrentar. Já havia tentando anteriormente ficar sem a pílula; havia parado por 1 ano por conta própria. Mas o medo me fez recair no vício. O medo de que meu corpo fosse se voltar contra mim em convulsões dolorosas, cistos, cânceres e sangue em profusão. O medo do meu corpo, percebo agora, era o medo da escuridão, da incerteza, da falta de controle; da vida. E era com esse medo que teria que lidar.
Apesar de todos os nossos avanços, somos ainda crianças com medo do escuro. Estamos presos em uma baía rasa, de recifes perigosos e ondas gigantes. Mas somos uma espécie abissal, que precisa da pressão de toneladas de água e a escuridão das profundezas; do lodo e das fissuras cheias de magna quente. No nosso ambiente, no fundo do oceano, somos feios e estranhos, mas temos luz própria. Por isso, me oponho às lâmpadas fluorescentes, aos ambientes iluminados das empresas que alimentam gado intelectual; aos hospitais e seus holofotes, que brilham sobre os corpos das mulheres grávidas antes de cortá-las contra sua vontade; me oponho às luzes do conhecimento científico. Voltar à zona abissal é uma tarefa difícil, cheia de riscos. Não há garantias de que se vá sobreviver. O medo é o sentimento que impera. Não só o medo das ondas gigantescas que quebram nos recifes de corais; mas o medo do alto-mar, do silêncio e do peso da água. Nenhuma espécie brilha sob luzes artificiais; nada é gestado sob a ditadura dos holofotes. Estamos todos cegos pela luz. Somos uma espécie abissal, morrendo lentamente em poças temporárias na superfície.
Resolvi retornar. Atravessei a arrebentação e estou no começo de um mergulho longo e solitário.
Nesse mergulho em apneia, encontrei cavalos-marinhos que cuidam de seus filhotes, peixes que se organizam em cardumes brilhantes e golfinhos que se chamam pelo nome. Nesse mergulho, vi os inacreditáveis homens-polvo dando prazer a uma mulher. O fundo do mar é estranho e incrível. Tem criaturas que nunca foram descritas. Há mistério e calor. Todos fogem de lá porque não podem acender suas lanternas brilhantes que não aguentam a pressão. Fogem porque esqueceram de seus outros sentidos adormecidos. Fogem porque, quando deixados no escuro, não têm como fugir da própria dor.
Dream of the Fisherman´s wife (Sonho da mulher do pescador), de Katsushika Hokusai.
Continua...
Tudo o que descobri sobre a pílula - e porque decidi não tomá-la (episódio piloto)
O ser humano não suporta uma vida sem significado
Carl Gustav Jung
Amigos muito queridos e perspicazes me alertaram para algo que eu mesma não tinha percebido. Comecei esse blog com a intenção de divulgar informações que para mim foram valiosas e me deram outra perspectiva sobre quase todos os aspectos da minha vida. E talvez, na ânsia de divulgar tudo o mais rápido possível, de mostrar onde estou agora, o que defendo, no que acredito, acabei começando pelo fim, que não é exatamente um fim em si, mas um lugar muito diferente de onde estava há alguns anos. Ao fazer isso, acabei por não incluir ninguém no processo que me trouxe a essas conclusões, na trajetória que percorri. Por isso, vou dar alguns passos para trás e começar do começo, ir um pouco mais devagar. Porque ao fazer isso, ao excluir todos desse processo, tudo que digo parece ter o intuito de instituir uma nova verdade, um novo discurso de autoridade. E a intenção genuína dessa iniciativa sempre foi a de mostrar um caminho alternativo, mais um caminho possível dentre tantos outros que podem ser criados.
Por isso, pretendo começar nesse mês de agosto, indo até setembro provavelmente, uma série de textos sobre a pílula e sobre o trajeto que me levou não só a deixar de tomá-la, mas a descobrir uma discussão muito rica e pouco divulgada sobre as questões políticas envolvidas nessa decisão.
Episódio piloto
Quando tento pensar em como tudo começou, lembro-me da situação deplorável em que me encontrava. Recém saída de um mestrado estressante, sem bolsa, tentando sobreviver com freelas e bicos, aos trancos e quase pulando de barrancos, com sérios conflitos familiares, um namoro intenso que acabava de começar e uma vida sem rumo certo.
Aos poucos, o trabalho foi estabilizando, a vida foi entrando nos eixos, o relacionamento foi firmando. E foi aí, nessa estranha calmaria, nessa vida estável e confortável, que o mal-estar que sempre me acompanhou, que sempre esteve rondando, me engoliu. Como diz a citação daquela pessoa famosa que não lembro o nome e que devo estar citando errado: "É quando tudo vai bem que os reais problemas começam".
Comecei a engordar exponencialmente, sentir falta de ar, labirintite...Fui acometida por uma série de traqueítes, laringites, faringites; por taquicardias, bruxismo, rinites...Tinha pesadelos recorrentes e momentos de depressão, ataques de pânico e delírios de fim de mundo.
Ia à médicos muito bons, que passavam horas em consulta me explicando como comer bem, que pílula tomar, como descobrir nódulos nos seios, quais exames fazer anualmente, que probióticos eram bons para viver para sempre. Me diziam que eu estava estressada e que devia tomar um fitoterápico para acalmar os dentes que se degladiavam durante as noite de sono conturbado; que devia fazer atividade física para manter a forma, e deixar de comer carboidratos, uma semana sim, outra não; que todo mundo hoje em dia vivia assim, e que não devia me preocupar que a pílula que tomava havia matado algumas mulheres, porque todas as pílulas tinham esse risco em potencial.
Mas por incrível que pareça, foi um reles exame de colesterol que realmente mudou minha vida. Minto, um exame de colesterol e um de triglicérides, que se aglutinaram para formam a bela e perfeita gota d'água. Quando vi que esses exames estavam um pouco alterados e que a perspectiva era de que com a idade isso só iria piorar, tive uma espécie de epifania.
Nunca me senti confortável em depender de remédios para viver. Evitava-os ao máximo. Talvez porque sempre tive dificuldade em aceitar ajuda, química ou de outra natureza. Mas sentia lá no fundo da espinha uma convicção de que eu não era doente, não deveria estar doente e não ia estar doente. Não aos 27 anos de idade, não tendo sido bem criada e bem alimentada, não tendo acesso a todo tipo de informação e a capacidade de entender meu corpo. Não quando dançava, fazia yoga, caminhava. Não quando comia bem. Não quando havia me formado bióloga, mestre em antropologia nutricional. De que adiantava tudo isso se não para aplicar na minha própria vida, na minha própria saúde?
Estava há poucos meses em um processo terapêutico intensivo, mordendo a língua por todas as vezes que maldizia a psicanálise como o refúgio dos perdedores que não tinham amigos. E bastaram esses meses iniciais para desenvolver em mim a confiança para desafiar algo de que já desconfiava há muito tempo. Para acreditar que talvez eu, uma reles qualquer, uma reles mulher, pudesse saber mais sobre o meu corpo, sobre a minha saúde, do que o meu médico afirmava saber. E foi nesse momento que toda a minha formação científica se direcionou para mim mesma, para a minha saúde; foi quando virei meu próprio objeto de pesquisa. Decretei que seria a única pessoa autorizada a desenvolver experimentos em meu corpo.
Queria entender porque estava doente. Queria ir ao fundo disso tudo.
Investi meu tempo, meu dinheiro e minha energia em uma empreitada que só posso descrever como uma peregrinação, no sentido que Hakim Bey atribui ao termo no ensaio Superando o turismo. Ele descreve o peregrino como alguém que "[...] passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição".
Essa peregrinação me fez ver um mundo diferente, um mundo que meus olhos cansados não viam. Não viam aqui, não veriam em Istambul, não veriam em Beirute, não veriam nunca, nem em Marte, nem na Lua. Eu precisava arrancar esses velhos olhos e recriar o mundo.
Então, me joguei em um processo de desconstrução brutal e perigoso, incerta se sobreviveria, tamanha o ímpeto destrutivo que me tomou. Achei que nada fosse sobrar, que não haveria mais nada ali sob os escombros quando terminasse, mas o que descobri foi algo surpreendente. O que restou de tudo isso foi pura e simplesmente eu, eu mesma; não meu nome, não meu trabalho, não meus hobbys, não o que faço, não meu traços físicos, nada que fosse palpável ou descritível. Somente eu, minha intuição e meus desejos abstratos. Mas isso me parecia muito mais real, muito mais concreto do que tudo que já havia racionalizado, teorizado, tocado ou compreendido em minha vida. Depois dessa destruição em massa, sinto que esse ser em mim, esse ser que me habita, é finalmente livre.
Antes, o que pairava era essa sombra incansável, como se nunca fosse meio dia, como se nunca houvesse claridade absoluta, como se nunca houvesse aquele momento em que a sombra finalmente retorna e você pode pisar completa no chão, você e sua sombra; juntas e eternamente separadas.
Como só percebemos que estávamos dormindo ao acordar, ao ver a diferença entre a vida que pulsava em mim e o coma em que vivia anteriormente, só pude sentir uma raiva imensa, uma raiva pelo tempo que me havia sido tirado e por saber que tantas outras pessoas, assim como eu, ainda podiam estar adormecidas.
Vi, como esses meus novos olhos, que vivemos em uma sociedade necrófila, que estupra mulheres mortas; mulheres que ela mesma matou. E essa morte simbólica é anunciada muito cedo. Ela começa com a rejeição dos nossos corpos e de tudo o que nos diferencia do corpo padrão: o corpo masculino. Vi que, desde cedo, a nossa fertilidade é a nossa mais ingrata qualidade; que ser mulher, nesse mundo, é carregar uma doença crônica que a todo momento é alvo de escrutínio médico e científico. Vi também que tudo isso tinha seus porquês, suas abomináveis explicações sem sentido.
Mas tudo começou com um projeto científico. Nesse projeto, defini que o primeiro passo para recuperar a minha vida, seria recuperar o meu corpo.
E foi aí que decidi: vou largar a pílula!
continua....
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