Tempo

Etsuko Fukaya

O que é a vida se não pêssegos maduros, suculentos; uma mescla de vermelhos alaranjados, penugem suave, sem sulcos de desidratação ou cores de prematuridade. Nem pequenos demais, nem inchados de dor. Reais, crescidos até seu limite, caídos do pé quando o corpo pesado se separa do ramo, sem esforço ou brutalidade. A impotência é amiga do homem. Ao tentar lutar contra o tempo das coisas, as matamos, mesmo que sua matéria esteja ali, crescendo forçadamente, ultrapassando os limites das frutas, dos animais e dos humanos. Mortos-vivos, alimentando-se de vegetais e animais além do tempo, em um universo paralelo em que não há pausa e não há espaços entre seres e suas ações. Um mundo cubista de bocas alienadas, caindo sobre pêssegos artificiais, narizes que não sentem o aroma da pressa, pessoas sobre pessoas, ações justapostas umas às outras.
Dentro de um quadro, uma moldura pesada, barroca, dourada. Aos poucos se consome todo o ar, pois esse pintor não pode parar de preencher espaços. O vazio come a carne de todos. E a arte (não) nos salvará.

Anjo do Lar



Em comemoração aos 106 anos de Simone de Beauvoir, um pouco de Virginia Woolf.
Virginia Woolf leu esse texto para a Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em 21 de janeiro de 1931. Foi publicado postumamente em A morte da mariposa, 1942.

Quando a secretária de vocês me convidou para vir aqui, ela me disse que esta Sociedade atende à colocação profissional das mulheres e sugeriu que eu falasse um pouco sobre minhas experiências profissionais. Sou mulher, é verdade; tenho emprego, é verdade; mas que experiências profissionais tive eu? Difícil dizer. Minha profissão é a literatura; e é a profissão que, tirando o palco, menos experiência oferece às mulheres – menos, quero dizer, que sejam específicas das mulheres. Pois o caminho foi aberto muitos anos atrás – por Fanny Burney, Aphra Behn, Harriet Martineau, Jane Austen, George Eliot* –; muitas mulheres famosas e muitas outras desconhecidas e esquecidas vieram antes, aplainando o terrenoe orientando meus passos. Então, quando comecei
a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O riscar da caneta não perturbava a paz do lar. Não se retirava nada do orçamento familiar. Dezesseis pences bastam para comprar papel para todas as peças de Shakespeare – se a gente for pensar assim. Um escritor não precisa de pianos nem de modelos,
nem de Paris, Viena ou Berlim, nem de mestres e amantes. Claro que foi por causa do preço baixo do papel que as mulheres deram certo como escritoras,
antes de dar certo nas outras profissões.

Mas vamos à minha história – ela é simples. Basta que vocês imaginem uma moça num quarto, com uma caneta na mão. Só precisava mover aquela caneta da esquerda para a direita – das dez à uma. Então ela teve uma ideia que no fundo é bem simples e barata – enfiar algumas daquelas páginas dentro de um envelope, colar um selo no canto de cima e pôr o envelope na caixa vermelha da esquina. Foi assim que virei jornalista; e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do mês seguinte – um dia gloriosíssimo para mim – com uma carta de um editor e um cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que não mereço muito ser chamada de profissional, que não conheço muito as lutas e as dificuldades da vida de uma mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele dinheiro com pão e manteiga, aluguel, meias e sapatos ou com a conta do açougueiro, saí e comprei um gato – um gato lindo, um gato persa, que logo me criou sérias brigas com os vizinhos.

Existe coisa mais fácil do que escrever artigos e comprar gatos persas com o pagamento? Mas esperem aí. Os artigos têm de ser sobre alguma coisa. O meu, se bem me lembro, era sobre um romance de um homem famoso. E, quando eu
estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”.** Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez
não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado,
era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está  escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura”. E ela fez que ia guiar minha caneta. E agora eu conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro – digamos, umas quinhentas libras anuais? –, e assim eu não precisava só do charme para viver. Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me mataria. Arrancaria o coração de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo. E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam – falando sem rodeios – mentir. Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela. Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda. É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade. Quando eu achava que já tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira. No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo em busca de aventuras. Mas foi uma experiência real; foi uma experiência inevitável para todas as
escritoras daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora.

Mas continuando minha história: o Anjo morreu, e o que ficou? Vocês podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum – uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moça só tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que é “ela mesma”? Quer dizer, o que é uma mulher? Juro que não sei. E duvido que vocês saibam. Duvido
que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas. E de fato esta é uma das razões pelas quais estou aqui, em respeito a vocês, que estão nos mostrando com suas experiências o que é uma mulher, que estão nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informação da maior importância.

Mas retomando a história de minhas experiências profissionais. Recebi uma libra, dez xelins e seis pences por minha primeira resenha, e comprei um gato persa com esse dinheiro. E aí fiquei ambiciosa. Um gato persa é uma coisa
ótima, disse eu; mas um gato persa não chega. Preciso de um carro. E foi assim que virei romancista – pois é muito estranho que as pessoas nos deem um carro se a gente contar uma história para elas. E é ainda mais estranho, pois a coisa
mais gostosa do mundo é contar histórias. É muito mais agradável do que escrever resenhas de romances famosos. Mas, se é para atender à secretária de vocês e lhes contar minhas experiências profissionais como romancista, preciso falar de uma experiência muito esquisita que me aconteceu como romancista. E, para entender, primeiro vocês têm de tentar imaginar o estado de espírito de um romancista. Acho que não estou revelando nenhum segredo profissional ao dizer que o maior desejo de um romancista é ser o mais inconsciente possível. Ele precisa se induzir a um estado de letargia constante. Ele quer que a vida siga com toda a calma e regularidade. Enquanto escreve, ele quer ver os mesmos rostos, ler os mesmos livros, fazer as mesmas coisas um dia depois do outro, um mês depois do outro, para que nada venha a romper a ilusão em que vive – para que nada incomode ou perturbe os misteriosos movimentos de farejar e sentir ao redor, os saltos, as arremetidas e as súbitas descobertas daquele espírito tão tímido e esquivo, a imaginação. Desconfio que seja o mesmo estado de espírito para homens e mulheres. Seja como for, quero que vocês me imaginem escrevendo um romance em estado de transe. Quero que vocês imaginem uma moça sentada com uma caneta na mão, passando minutos, na verdade horas, sem molhar a pena no tinteiro. Quando penso nessa moça, a imagem que me ocorre é alguém pescando, em devaneios à beira de um lago fundo, com um caniço na mão. Ela deixava a imaginação vaguear livre por todas as pedras e fendas do mundo submerso nas profundezas de nosso ser inconsciente. Então vem a experiência, a experiência que creio ser muito mais comum com as mulheres do que com os homens que escrevem. A linha correu pelos dedos da moça. Um tranco puxou a imaginação. Ela tinha sondado as poças, as funduras, as sombras onde ficam os peixes maiores. E então bateu em alguma coisa. Foi uma pancada forte. Espumarada, tumulto. A imaginação tinha colidido numa coisa dura. A moça foi despertada do sonho. E de fato ficou na mais viva angústia e aflição. Falando sem metáforas, ela pensou numa coisa, uma coisa sobre o corpo, sobre as paixões, que para ela, como mulher, era impróprio dizer. E a razão lhe dizia que os homens ficariam chocados. Foi a consciência do que diriam os homens sobre uma mulher que fala de suas paixões que a despertou do estado de inconsciência como artista. Não podia mais escrever. O transe tinha acabado. A imaginação não conseguia mais trabalhar. Isso creio que é uma experiência muito comum entre as mulheres que escrevem - ficam bloqueadas pelo extremo convencionalismo do outro sexo. Pois, embora sensatamente os homens se permitam grande liberdade em tais assuntos, duvido que percebam ou consigam controlar o extremo rigor com que condenam a mesma liberdade nas mulheres.

Então, essas foram duas experiências muito genuínas que tive. Foram duas das aventuras de minha vida profissional. A primeira - matar o Anjo do Lar - creio que resolvi. Ele morreu. Mas a segunda, falar a verdade sobre minhas experiências do corpo, creio que não resolvi. Duvido que algumas mulheres já tenham resolvido. Os obstáculos ainda são imensamente grandes - e muito difíceis de definir. De fora, existe coisa mais simples do que escrever livros? De fora, quais os obstáculos para uma mulher, e não para um homem? Por dentro, penso eu, a questão é muito diferente; ela ainda tem muitos fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer. Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo até que uma mulher possa sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar. E se é assim na literatura, a profissão mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora vocês estão exercendo pela primeira vez?

São perguntas que gostaria de lhes fazer, se tivesse tempo. Na verdade, se insisti nessas minhas experiências profissionais, foi porque creio que também sejam as de vocês, embora de outras maneiras. Mesmo quando o caminho está nominalmente aberto - quando nada impede que uma mulher seja médica, advogada, funcionária pública -, são muitos, imagino eu, os fantasmas e obstáculos pelo caminho. Penso que é muito bom e importante discuti-los e defini-los, pois só assim é possível dividir o trabalho, resolver as dificuldades. Mas, além disso, também é necessário discutir as metas e os fins pelos quais lutamos, pelos quais combatemos esses obstáculos tremendos. Não podemos achar que essas metas estão dadas; precisam ser questionadas e examinadas constantemente. Toda a questão, como eu vejo - aqui neste salão, cercada de mulheres que praticam pela primeira vez na história não sei quantas profissões diferentes - é de importãncia e interesse extraordinário. Vocês ganharam quartos próprios na casa que até agora era só dos homens. Podem, embora com muito trabalho e esforço, pagar o aluguel. Estão ganhando suas quinhentas libras por ano. Mas essa liberdade é só o começo; o quarto é de vocês, mas ainda está vazio. Precisa ser mobiliado, precisa ser decorado, precisa ser dividido. Como vocês vão mobiliar, como vocês vão decorar? Com que vão dividi-lo, e em que termos? São perguntas, penso eu, da maior importância e interesse. Pela primeira vez na história, vocês podem fazer essas perguntas; pela primeira vez, podem decidir quais serão as respostas. Bem que eu gostaria de ficar e discutir essas perguntas e respostas - mas não hoje. Meu tempo acabou, e paro por aqui.



*. Fanny Burney (1752-1840) escreveu romances e diários; Aphra Behn (1640-89) foi poeta, romancista e dramaturga; e Harriet Martineau (1802-76) escreveu sobre um amplo
leque de assuntos. Ver também as notas 9 (p. 41) e 14 (p. 44). (N.E.)
 **. Poema de Coventry Patmore (1823-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das mulheres. (N.E.)


Precisamos falar sobre sangue

"A visão é sempre uma questão de poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização. Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?"

"I am rooted, but I flow" Virgínia Wolf. Imagem Catherine G. McElroy. Occupy Menstruation.



Enquanto escrevo, sangro. Não o sangue romântico dos escritores e suas musas pálidas, não um sangue metafórico que representa algo mais elevado. Sangro sangue. Sangue real, visível, palpável, que escorre das paredes do meu útero, desce pelo canal da minha vagina e deixa meu corpo entrando em um mundo no qual não é bem vindo. Não é o sangue da guerra, da valentia e da violência dos homens, esse sangue tão valorizado dos ferimentos de batalha. É sangue de humanidade e fragilidade, de inescapável ligação com a matéria orgânica.

Um dia antes de sangrar, sonhei que matava um coelho, um coelho preto, com uma faca pequena e muito afiada. Em um momento de absoluta animalidade, com andar inaudível, de felina, acertei-o com uma facada certeira no pescoço. Não me incomodei em matá-lo; estava em minha vestimenta animal. Mas vê-lo morto e ter que carregá-lo, enquanto suas vértebras se quebravam em minhas mãos ensanguentadas foi uma experiência onírica das mais brutais. Embora superficialmente possa parecer um sonho de caça, violência e valentia, foi muito mais um sonho sobre a minha fragilidade e a do coelho, sobre a carne tênue que eu cortei e o sangue e a vida que ele derramou. Foi um sonho sobre vértebras que se despedaçam em um ser fragilizado pela morte.

Lidar com sangue é lidar com vida e a possibilidade de sua perda. É lidar com a morte, o medo e a impotência frente a um mundo sobre o qual temos pouco controle. Expiramos em um segundo, há milhões de formas de morrer. E temos a desesperada necessidade de nos manter afastados desse aspecto brutal, dessa indiferença cósmica que faz questão de nos mostrar a cada segundo que, por mais que amemos, por mais profundas que sejam nossas experiências, por mais conhecimento que possamos obter do mundo, nada nos salva, nada nos dá garantias.

Desde o momento em que decidi escrever sobre a menstruação, sabia que teria que fazê-lo sangrando. É nesse momento de fragilidade que está um dos períodos mais férteis das mulheres. Não a fertilidade exterior, ligada à ovulação e à capacidade de gerar um vida, de povoar o mundo. É de uma fertilidade mais sutil e muito mais íntima. Uma fertilidade que não deve nada ao mundo. Que não demanda produtividade. Sem função aparente. Não é à toa que o maior proponente da supressão menstrual seja o médico brasileiro autor do livro Menstruação - a sangria inútil, sobre o qual pretendo falar em mais detalhes nos próximos textos.

Defendo com vigor o abandono das noções de utilidade e produtividade vendidas atualmente, especialmente para as mulheres. Elas garantem a destruição dos aspectos mais sutis da psicologia feminina em prol de sua inserção em um mundo hostil à tudo que se insere em seu corpo. Utilidade é um conceito bastante perigoso, geralmente apropriado por adeptos de visões extremamente limitadas do mundo, nesse caso homens, que se aventuram a falar do corpo de mulheres. Com pouca criatividade e pouca disposição à pensar de forma divergente, esses homens - porque a ciência e a história foram até recentemente feitas exclusivamente por eles- não tiveram a capacidade de atribuir qualquer sentido positivo às estruturas e eventos exclusivos do corpo feminino: clitóris, seios, menstruação, contracepção, gestação, parto, amamentação e menopausa. A violência obstétrica, as taxas recorde de cesáreas sem indicação médica, os procedimentos ritualísticos e não apoiados por evidências feitos durante o parto (episiotomia, tricotomia, posição deitada no parto etc), o incentivo à supressão menstrual, a indicação indiscriminada dos contraceptivos hormonais, a falta de diálogo entre médicos e pacientes sobre seus tratamentos e exames de saúde, o terrorismo em torno do câncer de mama e outros cânceres ginecológicos, os tabus que cercam a amamentação e a menopausa, tudo isso ilustra um cenário de completo desconhecimento e debate esclarecido (e corajoso) sobre o corpo feminino.

A história da medicina é das mais assustadoras, especialmente nos episódios ligados ao estudo anatômico do corpo feminino. Até pouco tempo não se sabia quase nada sobre o clitóris. Ainda hoje se disseminam mitos sobre o ponto G e o orgasmo feminino. A facilidade com que os processos do corpo feminino são descartados como inúteis demonstra a arrogância daqueles que se propõe a estudá-lo. Mais perigosa é a ideologia que sustenta a visão de que o corpo feminino é falho e que os processos e estruturas que lhes são particulares podem ser facilmente substituídos ou suprimidos sem trazer risco à saúde e à integridade psíquica das mulheres. O parto ilustra muito bem isso. A crença de que trazer um bebê ao mundo por meio de uma cirurgia é mais seguro e mais indicado, tanto para mãe quanto para a criança, só se sustenta porque tanto os médicos quanto as mulheres foram socializadas em uma cultura que considera descartáveis e facilmente substituíveis os fenômenos que se inscrevem nos corpos femininos. A menopausa é um ótimo contraexemplo, uma vez que as terapias de reposição hormonal (agora consideradas perigosas para a saúde) buscavam justamente negar e reverter os efeitos das mudanças hormonais características dessa fase. Vivemos a negação da menstruação e do parto ao mesmo tempo em que não aceitamos o fim da fertilidade. Somos extremamente infantis e avessos à mudanças. Como mulheres, somos penalizadas pela perspectiva parcial e limitada por meio da qual o mundo foi interpretado nos últimos milhares de anos.

O corpo é uma entidade que foi escravizada pelos desejos predatórios e vorazes de um mundo que só se sustenta com crescimento constante, produtividade ininterrupta e lucros crescentes, cada vez mais concentrados. A cisão natureza/cultura, mente/corpo, sujeito/objeto sustenta esse movimento ao negar os limites do corpo, do mundo natural e dos sujeitos em atender as demandas de nosso modo de vida. Assim, nos sentimos limitados quando temos que ceder aos desejos e necessidades do corpo: quando precisamos dormir, comer alimentos mais nutritivos, quando ficamos doentes, quando menstruamos, quando engravidamos. Não porque esse processos em si sejam limitantes, mas porque vivemos em um mundo hostil ao tempo, hostil ao corpo biológico e hostil à natureza.

Nessa guerra constante entre os desejos de uma mente colonizada por imagens de sucesso, movimento, atividade, vigor, nos ressentimos de nossos corpos que não permitem que avancemos sem levar-lhes em consideração. Construiu-se a ideia do corpo como simples aparato que carrega a mente, o que se vê claramente nas escolas (e nas empresas), onde os alunos (e funcionários) são forçados a passar grande parte dos seus dias sentados, em total negligência para com seus corpos. Não é à toa que as aulas de dança são atividades extracurriculares na maioria das escolas. Mas não se pode negligenciar o corpo por muito tempo, e as campanhas opressivas de saúde garantem que se saiba disso. Repletos de medo de se ver punidos por esses corpos despóticos e vingativos, todos atentam para as recomendações médico-nutricionais sobre como ter uma vida saudável, evitando que seus corpos se rebelem em espasmos de doenças e cânceres. A completa alienação em relação ao corpo soma-se ao medo de seus descontroles.

A tendência atual à construção de corpos perfeitos e magros por meio de cirurgias estéticas, dietas restritivas e as mais diversas práticas corporais busca construir corpos que realizem desejos de sucesso, de amor, de status. Cria-se um corpo escravizado pelos desejos de uma mente que se vê como onipotente. Mas, ao mesmo tempo, esse é um corpo que protege, pois ergue muralhas, afasta; é um "corpo invólucro"¹, "um corpo como forma de limite rígido entre o sujeito e o mundo". Não é, contudo, um corpo que deseja, um corpo que vive. Um corpo vivente, na concepção de Nelson Coelho Júnior, "é um corpo no mundo, em relação. Um corpo que escapa, assim, do corpo dos limites, do corpo imaginado pelo sujeito moderno. [...] Com o desejo de construir um corpo eterno, construímos um corpo morto, sem desejo, vampirizado em sua potência vital. [...] Corpos mortos não sangram.

Partilho da visão de Merleau-Ponty, de que" [...] não estou diante de meu corpo, estou dentro de meu corpo, ou mais certamente sou meu corpo." Enquanto sou corpo, viver fragmentada, viver como mente e  alienada do corpo é estar fraturada. Menstruar é parte de mim. Eu sou meu corpo. Meu corpo sangra.


Se a visão é um questão do poder de ver, precisamos poder ver mais. Poder ver de perspectivas distintas, poder ver a nós mesmas com olhos que se permitem sangrar. Não deixemos que as nossas próprias visões sobre os nossos corpos e as nossas identidades nos sejam impostos por olhares exógenos. Devemos aprender a olhar, com liberdade, com criatividade. Para nos livrarmos das violências implícitas em nossas práticas de visualização, precisamos arrancar nossos próprios olhos e crescer uma nova visão.
 


Continua...

¹ "Corpo construído, corpo vivido e corpo desejante - considerações contemporâneas sobre a noção de corpo na psicanálise e na filosofia de Merleau-Ponty", de Nelson Coelho Júnior.

Dourando a pílula: o gosto amargo dos contraceptivos hormonais

Este é o quarto texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la
Versão em inglês

Ao buscar informações sobre a pílula na internet, o blog de Holly Grigg-Spall, Sweetening the pill, foi um dos poucos lugares que encontrei onde o assunto era debatido de forma crítica e corajosa. Seu livro, Sweetening the Pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control [Dourando a pílula: ou como ficamos viciadas em contraceptivos hormonais - minha tradução], foi recentemente publicado. Eu tive o prazer de lê-lo e acredito ser uma leitura essencial para todas as mulheres que buscam se empoderar e tomar decisões informadas sobre sua saúde e contracepção. Depois de ler seu livro, perguntei a Holly se poderia entrevistá-la e ela gentilmente aceitou.


P: Por que as histórias de tantas mulheres, seus sentimentos negativos e reações à pílula, e os problemas de saúde que ela gera, são tão comumente descartados como queixas isoladas?

R: Ao longo da história, foi dito às mulheres que seus problemas de saúde são "coisas de suas cabeças". Isso costumava ser chamado de histeria, agora é chamado de "o poder da sugestão". As mulheres são tratadas como se fossem histérica e como se elas estimulassem a histeria umas nas outras.Além disso, as mulheres frequentemente se queixam sobre os efeitos colaterais da pílula de forma isolada. No consultório de um médico ou em uma clínica de planejamento familiar, por exemplo. As mulheres não estão reclamando sobre os efeitos colaterais como um coletivo. Na verdade, as mulheres parecem ser muito mais propensas a se culpar, a culpar seus próprios corpos por não reagir da maneira correta ao medicamento, ou por não ser complacente com o medicamento, do que são propensas a culpar o próprio medicamento ou aquele que as encorajou a tomá-lo. Por isso, elas muitas vezes não percebem sua experiência de efeitos colaterais como uma experiência coletiva de muitas mulheres, embora, certamente, o seja.Vivemos em tempos muito conservadores. As pessoas têm dificuldade em questionar instituições como a indústria médica ou corporações como as empresas farmacêuticas. O neoliberalismo do nosso tempo exige que vejamos a nós mesmos como agentes livres, que se movem pelo mundo sem ser afetados pelas pressões sociais e individualmente responsáveis por cada acontecimento em nossas vidas. O feminismo dominante atualmente dita que nos fixamos na Escolha. Portanto, se você faz uma escolha que acaba por ser ruim para você e impactar negativamente a sua vida, esse é um problema só seu.Em muitas outras áreas aceitamos as experiências dos indivíduos como válidas na maneira como eles explicam essas experiências. Por exemplo, se uma mulher trans diz que ela é uma mulher, nós aceitamos essa experiência como válida e a honramos como válida. Se alguém diz que é intolerante ao glúten e que o glúten o deixa doente, nós aceitamos isso como válido e nos reorganizamos para admitir esta experiência. No entanto, estamos vendo que quando as mulheres detalham suas experiências com contraceptivos hormonais, elas são dispensadas ou silenciadas. Os contraceptivos hormonais estão tão atrelados à nossa ideologia que até mesmo a honestidade é vista como uma ameaça ao status quo. 

P: Por que, como você diz no livro, é tão difícil criticar a pílula hoje em dia?

R: A pílula é vista como sinônimo da libertação das mulheres e do progresso da mulher na sociedade ao longo das últimas décadas. Quando discutimos métodos contraceptivos, muitas vezes, na verdade, significa apenas "a pílula". Tornou-se uma panaceia para qualquer doença que afeta as mulheres. Chegamos a um ponto em que o estado natural da mulher é considerado inerentemente doente (isto não nega o fato que algumas mulheres ficam doente por conta de sua biologia, mas não somos TODAS doentes porque somos mulheres, o que eu acredito que é a mensagem) .A crítica à pílula tem sido cooptada por grupos, como a direita religiosa, que são, muitas vezes, anti-aborto, anti-sexo antes do casamento e anti-contracepção como um todo. O movimento das mulheres tem permitido que essa conversa seja dominada. Isso significa que quando nós criticamos a pílula, somos vistas como se estivéssemos fornecendo munição para o "outro lado ". Nos EUA, a contracepção está sendo ameaçada por certas facções que aparentemente desejam tornar mais difícil para as mulheres obter conhecimento sobre e acesso à contracepção. Isso fez com que a esquerda liberal feminista ficasse ainda mais zelosa em seu entusiasmo pelos contraceptivos hormonais e menos aberta à discussões honestas sobre questões de segurança - mesmo quando essas questões são extremamente sérias, por exemplo, a situação com Yaz/Yasmin e a formação de coágulos sanguíneos.E não devemos esquecer que a contracepção hormonal é uma indústria de bilhões de dólares na qual as mulheres são pacientes que compram medicamentos por muitos e muitos anos de suas vidas. Nós não somos nada se não uma sociedade movida pelo corporativismo e isso desempenha um importante papel na maneira como pensamos sobre a pílula. A capacidade de penetração da indústria farmacêutica dentro da indústria médica e sua influência sobre os estudantes de medicina, médicos e as próprias mulheres não deve ser subestimada.

 P: Em sua pesquisa e durante sua própria experiência com a pílula, quais efeitos colaterais você descobriu que normalmente não são mencionados no debate convencional e quais você acha que mais a afetaram pessoalmente? 

R: Eu acho que o impacto psicológico e emocional da pílula nas mulheres raramente é discutido com alguma seriedade. Existe muito pouca pesquisa contínua envolvendo grandes grupos de mulheres, seguidas por um longo período de tempo. Há muito pouca atenção às mulheres que relatam estas questões. Não é apenas a depressão que precisa ser discutida, mas também a ansiedade e a anedonia (incapacidade de desfrutar de atividades geralmente apreciadas). O impacto pode se manifestar de várias maneiras, não necessariamente apenas em um quadro clínico de depressão, e essas formas podem ser muito prejudiciais para a qualidade de vida de uma mulher. Foram certamente esses problemas que me afetaram pessoalmente - ansiedade, ataques de pânico, anedonia, raiva. Além disso, o impacto negativo sobre a experiência sexual das mulheres  não é discutido o suficiente. Não só a libido reduzida como resultado da pílula, mas a falta de lubrificação, reduzida intensidade de orgasmo, dor durante o ato sexual e a probabilidade aumentada de infecções. 

P: Nas discussões do dia a dia podemos ver que a contracepção tem sido, de alguma forma, igualada à pílula e outros contraceptivos hormonais. O que você acha que contribuiu para isso?

R: O capitalismo. A contracepção hormonal gera muito dinheiro para algumas pessoas e se a marca "a pílula " pode se tornar sinônimo de contracepção como um todo, essas pessoas fizeram bem o seu trabalho. A contracepção hormonal nos tem sido empurrada como a ÚNICA opção, na verdade como a própria representante da Escolha. Além disso, a indústria médica, sob o domínio da indústria farmacêutica, apresenta os contraceptivos hormonais como a melhor opção para as mulheres - seja para a contracepção ou para questões relacionadas ao ciclo menstrual. A camisinha é vista como útil apenas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, não como método contraceptivo. Todas as outras opções são vistos como ineficazes, inconvenientes, intrusivas ou arcaicas. 

P: Muitas pessoas são cuidadosas ao tomar medicamentos e ficam alertas para seus efeitos colaterais, mas quando se trata da pílula, não a consideram como uma possível causa de problemas de saúde em mulheres que a estão tomando ou que já a tomaram. Como chegamos a não pensar na pílula como uma droga?

R: Nós a chamamos de "a pílula", como se fosse algo inócuo e inofensivo. Nós não pensamos nela como uma droga poderosa, ou como um produto médico. Por todas as razões mencionadas anteriormente, os contraceptivos hormonais têm dominado nossa conversa sobre contracepção. Tornou-se parte da vida moderna para as mulheres. Essencialmente, nossa cultura vê os corpos das mulheres como inerentemente doentes e defeituosos. A pílula corrige os órgãos reprodutivos problemáticos até que eles sejam necessários para o ato socialmente útil de proporcionar uma gravidez. Vemos nossos ciclos antes da gravidez como um incômodo, a causa da doença e da dor, e eles são usados ​​contra nós como indicação de nossa inferioridade em relação aos homens. A pílula é entendida como algo que nos faz melhores. Melhores mulheres. É discutida quase como uma vacina contra o câncer, como a razão da igualdade conseguida pelas mulheres na sociedade, como a razão que as faz, hoje, trabalhar ao lado dos homens nas mais diferentes profissões, até como a razão pela qual as mulheres são felizes. Foi dado à pílula grande parte do crédito pelas conquistas das mulheres ao longo da história. A pílula foi a primeira droga de estilo de vida e é uma porta de entrada que faz com que as mulheres vejam as intervenções médicas não como uma opção, mas como uma necessidade em todos os estágios- menstruação, fertilidade, gravidez, parto, menopausa. 

P: Visto que, como você afirma, "a nossa relação com a pílula é inseparável da nossa relação com a menstruação", o que você acredita estar por trás dessa tendência atual que incentiva as mulheres a suprimir a menstruação e como isso está ligada à pílula?
 
R: A nossa relação com a menstruação está indissociavelmente ligada à nossa relação com a pílula. A pílula nos livra da menstruação e a substitui por sangramentos de escape. A pílula é prescrita para mulheres jovens para "tratar" os ciclos menstruais difíceis e "regular" os seus ciclos. Nossa sociedade perpetua um tabu menstrual que liga a menstruação à vergonha e, portanto, livrar-se dela é visto como algo positivo. Somos informados de que não há razão médica para menstruar, o que não é verdade. Antes da proliferação dos contraceptivos hormonais a menstruação era vista como o quinto sinal vital de uma boa saúde.Vemos a menstruação como inconveniente, porque a nossa sociedade a torna inconveniente. Não é possível menstruar na praia, de férias. Não é possível tirar um tempo se você tem cólicas. Devemos estar ligadas e disponíveis, em todos os sentidos, em todos os momentos. Controlar a menstruação é também uma extensão do controle de outros aspectos do corpo feminino - sejam as flutuações de peso, ou os pelos das pernas e das axilas.Grande parte das justificativas para suprimir a menstruação com o uso de medicamentos remonta ao trabalho do Dr. Coutinho [médico brasileiro] e ele estava intimamente envolvido com o desenvolvimento da injeção e do implante - a contracepção hormonal que agora gera um monte de dinheiro. Parece que acreditamos que a ciência existe separadamente da nossa ideologia. Isso não é verdade, a ciência muitas vezes se propõe a provar o que é necessário provar. 

P: Por que as reações à pílula masculina e feminina são tão diferentes, e por que a pílula masculina não foi tão pesquisada e promovida quanto a pílula feminina?
 
R: Acredita-se que a pílula feminina está "tratando" um problema - a fertilidade e uma possível gravidez indesejada. A gravidez é, portanto, a doença e a pílula é o remédio ou cura. Já a pílula masculina acredita-se que seria uma droga que não está tratando diretamente um problema. Portanto, os efeitos colaterais não serão tolerados, por parte da indústria médica, ou pelos homens - a droga não é necessária e por isso um impacto negativo é levado em consideração com mais seriedade. Os homens não engravidam. Não se considera que os homens também sofram as consequências de uma gravidez indesejada - consequências econômicas, sociais, de saúde também. Eles também podem sofrer consequências se sua parceira usa o contraceptivos hormonais e sofre efeitos colaterais.Esse debate mostra como nós, como uma sociedade, sentimos que a prevenção da gravidez é responsabilidade da mulher e que os homens não têm qualquer ligação intrínseca com a ocorrência de uma gravidez além do fornecimento de esperma. Há muito misoginia entranhada no sistema médico. É uma linha de pensamento presente em todas as outras áreas da nossa sociedade - como vemos homens/pais em relação às mulheres/mães. É por isso que vemos os homens que cuidam de seus próprios filhos como  "babás" e as mulheres que cuidam de seus filhos como desempenhando seu papel correto e natural.

P: No livro, você sugere um interessante paralelo entre a aceitação da cesariana e da pílula pelas mulheres. Você poderia falar sobre isso brevemente?

R: Como eu disse antes, a pílula é uma droga que funciona como porta de entrada, que faz com que as mulheres considerem mais aceitáveis as constantes intervenções médicas às quais são submetidas ao longo dos diferentes estágios de suas vidas, incluindo a gravidez e o parto. Temos uma abordagem padronizada à contracepção, à gravidez e ao nascimento, porque é o método por meio do qual se faz mais dinheiro ou se economiza mais dinheiro de formas que beneficiam o sistema.Tratar o nascimento como um procedimento cirúrgico nem sempre é saudável para a mulher ou o bebê. Tratar TODOS os nascimentos como procedimentos cirúrgicos certamente não é do interesse de todas as mulheres. Da mesma forma, tratar a fertilidade como uma doença e suprimir o ciclo menstrual com drogas poderosas não é do melhor interesse de muitas mulheres. Sim, às vezes as drogas e, por vezes, a cirurgia são necessárias, mas não devem ser vistas como um padrão de atendimento para qualquer situação.

P: Hoje em dia, existem empresas farmacêuticas que tentam desenvolver outra droga para tratar a falta de desejo sexual das mulheres. Qual visão de sexualidade feminina está implícita neste discurso que dá apoio ideológico para o uso generalizado de contraceptivos hormonais? 

R: Eu acredito que é uma visão que sugere que a quantidade é mais importante do que a qualidade. Enquanto as mulheres estão tendo relações sexuais com frequência, enquanto os homens também estão, então não importa se o sexo é realmente agradável. A ideia é fornecer um medicamento que faz com que as mulheres "queiram" sexo com mais frequência, com a compreensão de que mais sexo será equivalente a melhor sexo. Normalmente, os estudos investigam quantas vezes um casal está fazendo sexo e não como eles se sentem sobre o sexo que eles estão fazendo.Hugh Hefner [fundador da Playboy] esperava que a pílula tornasse as mulheres mais disponíveis sexualmente - pois acreditava-se que a principal razão pela qual uma mulher recusaria sexo seria porque ela estava com medo de engravidar -  e mais "sexy". Sexy é exterior e não interior. É sobre as mulheres se comportarem de certa maneira para excitar os homens.Há uma pressão sobre homens e mulheres para querer e fazer sexo o tempo todo. Se você não está fazendo isso, então há algo errado com você que precisa ser corrigido. É claro que por trás do desenvolvimento desta droga está o dinheiro, e muito dinheiro vai ser feito se você considerar como é ampla a definição de disfunção sexual atualmente e quão ampla pode se tornar no futuro. Nós todos poderíamos ser vistos como sexualmente disfuncionais e precisando ser medicados dentro de uma década. 

P: O que significa para você ser feminista? Quais são as batalhas que se aproximam e quais são seus planos para o futuro? 

R: O feminismo tem de deixar de ser um servo do capitalismo. Precisamos parar de ver o sucesso das mulheres nos estreitos termos capitalistas de status corporativo e ganho econômico como a totalidade do movimento feminista. Eu não quero mais CEOs ridiculamente bem pagos que também são do sexo feminino. Eu quero que a desigualdade social seja abordada. Eu quero a redistribuição da riqueza que hoje está nas mãos de uns poucos. O feminismo deve ser sobre mudança social e revolução, não sobre expandir escolhas para as mulheres na economia de mercado. Eu sou uma feminista, mas eu também sou um humanista, eu quero melhor qualidade de vida para homens e mulheres, para todos nós, porque o que temos agora não é sustentável e é totalmente desumano. Chegamos a um ponto em que não acreditamos que haja uma alternativa, e que nós apenas temos que aceitar esse destino. O feminismo tradicional atualmente tem sido cooptado por aqueles que preferem manter o status quo em vez de contestá-lo.

The bitter taste of hormonal contraceptives

This is the forth post in a series about the contraceptive pill and the reasons why I have decide to quit hormonal contraceptives. When trying to find honest information about the pill on the internet, Holly Grigg-Spall's blog Sweetening the Pill was one of the few places I could find that was really talking about it in a corageous and critical way. Her book, Sweetening the pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control, has recently been published. I had the pleasure of reading it and think it is a must read for women that really want to be informed and empowered to make decisions about their health and contraception. After reading the book, I asked Holly for an interview, which she gladly answered.
Versão em português


Q: Why are the stories of so many women, their negative feelings and reactions to the pill, the health problems that it generates so commonly dismissed as isolated complaints?

A: Throughout history women have been told that their health problems are "all in their heads." It used to be called hysteria, now it's called "the power of suggestion" instead. Women are treated as though they are hysterical and as though they even whip up hysteria in each other. 

Also, women are often making these complaints regarding side effects from the pill in isolation. At a doctor's office or family planning clinic office for example. Women aren't complaining about side effects as a collective. In fact, women seem to be far more likely to blame themselves, to blame their own bodies for not reacting in the right way to the drugs, or for not being compliant to the drugs, than they are likely to blame the drugs themselves or those that encouraged them to take those drugs. Therefore they often don't see their experience of side effects as a collective experience of many women, even though it certainly is that. 

We live in highly conservative times. People find it hard to question institutions like the medical industry or corporations like pharmaceutical companies. The neoliberalism of our time dictates that we see ourselves as free agents moving through the world unfettered by social pressures and individually responsible for every occurrence in our lives. Current mainstream feminism dictates that we fixate on Choice. Therefore if you make a choice and it turns out to be bad for you and negatively impact your life, that's your problem alone. 

In many other areas we accept individual's experiences as valid in the way they explain those experiences. For example, if a transwoman says she's a woman, we accept this experience as valid and honor it as valid. If someone says they are gluten-intolerant and that gluten makes them sick, we accept that as valid and reorganize to admit this experience. However, we are seeing that when women detail their experiences with hormonal birth control they are dismissed or silenced. Hormonal birth control is bound up in our ideology so tight that even honesty is seen as a threat to the status quo. 

Q: Why, as you put it in the book, it is so hard, nowadays, to criticize the pill?  

A: The pill is seen as synonymous with women's liberation and the progress of women in society through the last few decades. When we discuss "birth control" we often actually mean just "the pill." It has become a cure-all for any ailment that impacts women. We have got to a point that women's natural state is thought inherently sick (this is not to deny some women are made sick by their biology, but we are not ALL sick because we are women, which I believe is the message). 

Criticism of the pill has been co-opted by groups, like the religious Right, that are all too often anti-abortion, anti-sex before marriage, and anti-contraception as a whole. The women's movement has allowed this conversation to be dominated. This means when we criticize the pill we are seen as providing ammunition to "the other side" as it were. In the US birth control is understood as under threat by certain factions who seemingly desire to make it difficult for women to obtain knowledge of contraception and access to contraception. This has made the feminist, liberal Left even more zealous in their enthusiasm for hormonal birth control and even less open to honest discussion about safety issues - even when they are gravely serious, for example the situation with Yaz/Yasmin and blood clots. 

And we mustn't forget that hormonal birth control is a billion dollar industry within which women are patients buying drugs for many, many years of their lives. We are nothing if not a corporate-driven society these days and so this plays a huge factor in how we think about the pill. The pervasive reach of the pharmaceutical industry within the medical industry, and its influence on medical students, practicing doctors, and women themselves should not be underestimated. 

Q: In your research and during your own experience trying to quit the pill, what side effects have you discovered that are not usually mentioned in the mainstream debate and which ones do you think most affected you personally?

A: I think the impact of the pill psychologically and emotionally for women is rarely discussed with any seriousness. There is far too little solid research involving large groups of women followed over a long period of time. There is far too little attention paid to women who report these issues. It's not just depression that needs to be discussed, but also anxiety and anhedonia (the inability to enjoy activities usually enjoyed). The impact can show itself in many ways, not necessarily just a clinical state of depression, and those ways can be very damaging to a woman's quality of life. It was certainly these problems that affected me personally - anxiety, panic attacks, anhedonia, rage. Also perhaps the negative impact on women's experience of sex is not discussed enough. Not only lowered libido as a result of the pill, but lack of lubrication, lowered intensity of orgasm, pain during sex, and the heightened likelihood of infection. 

Q: In day to day discussions we can see that contraception has, somehow, been equated to the pill and other forms of hormonal birth control. What do you believe has contributed to that?

A: Capitalism. Hormonal birth control makes a few people a lot of money and if the brand "the Pill" can become synonymous with birth control as a whole they've done their jobs well. Hormonal birth control has been pushed as the ONLY choice, in fact representative of Choice itself. Also the medical industry, under the thumb of the pharmaceutical industry presents hormonal birth control as the best option for women - whether that's for contraception or cycle issues. Condoms are seen as only useful for prevention of transmission of STIs, not as contraception. All other options are viewed as ineffective, messy, obtrusive, or archaic. 

Q: We are normally caution about taking prescription drugs and wary of their side effects, but when it comes to the pill, it is never considered as a possible cause of health problems in women that are taking it or have taken it. How have we come not to think of the pill as a drug?

A: We call it "the Pill" as though it were innocuous and harmless. We don't think of it as a powerful drug or as a medical product. For all the reasons mentioned before, hormonal birth control has dominated our contraception conversation. It has become part of modern life for women. Essentially we see women's bodies, as a culture, to be inherently sick and faulty. The pill fixes the troublesome reproductive organs until they are needed for the socially useful act of providing a pregnancy. We see our cycles prior to pregnancy as a nuisance, the cause of sickness and pain, and they are used against us as indication of our inferiority to men. The pill is understood to make us BETTER. Better women. It is discussed almost as a cancer-vaccine, as the reason for women gaining equality in society, as the reason for them working alongside men in careers, as the reason they are happy even. It has been given a whole lot of credit for women's achievements through history. The pill was the first lifestyle drug and it is a gateway drug that opens women up to seeing medical intervention as not an option but a necessity at every point - menstruation, fertility, pregnancy, birth, menopause. 

Q: Since, as you stated, “our relationship to the pill is inseparable from our relationship to menstruation”, what do you believe is behind this current trend that encourages women to suppress menstruation and how is it connected to the pill?

A: Our relationship to menstruation is inextricably linked to our relationship to the pill. The pill gets rid of periods and replaces them with withdrawal bleeds. Young women are prescribed the pill to "treat" difficult menstrual cycles and "regulate" their periods. Our society perpetuates a menstrual taboo that links menstruation to shame and therefore getting rid of periods is seen as a positive. We are told there's no medical reason to have a period, which is untrue. Prior to the proliferation of hormonal birth control menstruation was seen as the fifth vital sign of good health. 

We see menstruation as inconvenient because our society makes it inconvenient. It is not possible to have your period at the beach on vacation. It is not possible to take time out if you have cramps. We must be on, and available, in all ways, at all times. Controlling menstruation is also an extension of controlling other aspects of the female body - be that weight fluctuations, or hair on legs and armpits. 

Much of the justifications for skipping periods with drugs goes back to the work of Dr Coutinho and he had ties to the development of the shot and the implant - hormonal birth control that now makes a lot of money. We seem to feel science exists separately from our ideology. This is not true, science too often sets out to prove what is necessary to prove. 

Q: Why our reactions towards male and female pill are so drastically different, and why hasn’t the male pill been as researched and promoted as the female pill?

A: It is believed that the female pill is "treating" an issue - fertility and possible unwanted pregnancy. Pregnancy is therefore the illness and the pill is the medicine or cure. With the male pill it is believed this would be a drug that is not directly treating an issue. Therefore side effects will not be tolerated, by the medical industry, or by men - the drug is not needed and so a negative impact is viewed as more important a consideration. Men do not get pregnant. It is not considered that men also have consequences from unwanted pregnancies - economic, social, health too. They may also have consequences if their partner uses hormonal birth control and suffers side effects. 

The conversation shows how we as a society feel pregnancy prevention is a woman's responsibility and that men do not have any intrinsic connection to the occurrence of a pregnancy beyond providing sperm. There's much misogyny ingrained in the medical system. It's a line of thought too often carried through in all other areas of our society - how we view men/fathers in relation to women/mothers. It's why we see men taking care of their own children as "babysitting" and women taking care of their children as doing their natural, right role. 

Q: In the book, you suggest an interesting parallel between women’s acceptance of the cesarean and of the pill. Could you talk about it briefly?

A: As I said before, the pill is a gateway drug that opens up women to being more accepting of constant medical intervention through the stages all of their lives, including pregnancy and birth. We have a one-size-fits-all approach to contraception and to pregnancy and birth because it is the method by which the most money is made or saved in ways that benefit the system. 

Treating birth as surgery is not always healthy for the woman or her baby. Treating ALL birth as surgery is certainly not in the best interests of all women. Similarly treating fertility as an illness and suppressing the cycle with powerful drugs is not in many women's best interests. Yes, sometimes drugs and sometimes surgery is needed, but it should not be seen as a standard of care for either situation. 

Q: Nowadays, there are pharmaceutical companies trying to develop another drug that will address women’s lack of sexual desire. What vision of female sexuality is implicit in this discourse that gives ideological backing for the widespread use of hormonal contraceptives?

A: I believe it is a view that suggests quantity is more important than quality. As long as women are having sex frequently, as long as men are too, then it doesn't matter whether the sex is actually enjoyable. The idea is to provide a drug that makes women "want" sex more with the understanding that more sex will equal better sex. Usually studies rest on how many times a couple is having sex not how they feel about the sex that they are having. 

Hugh Hefner hoped that the pill would make women more sexually available - because it was believed that the main reason a woman would refuse sex is because she was fearful of pregnancy - and more "sexy." Sexy is exterior, not interior. It is about women behaving in certain a way to arouse men. 

There is a pressure on both men and women to want and have sex all of the time. If you are not doing this then there is something wrong with you that needs to be fixed. Of course behind the development of this drug is money, and much is to be made if you consider how broad the definition of sexual dysfunction is currently and could become. We could all be seen as sexually dysfunctional and in need of drugs within a decade. 

Q: What does it mean for you to be a feminist? What are the battles that lie ahead, and what are your own plans for the future?

A: Feminism needs to stop being the handmaiden to capitalism. We need to stop seeing success of women in the narrow capitalistic terms of corporate status and economic gain as the be-all end-all of the feminist movement. I don't want more ridiculously high paid CEOs who are also female. I want social inequality addressed. I want the redistribution of wealth out of the hands of the undeserving few. Feminism needs to be about social change and revolution, not expanding choice for women in the free market. I'm a feminist but I'm also a humanist, I want a better way of life for men and women, for us all, because the one we have now is not sustainable and is entirely inhumane. We have got to a point where we don't believe there is an alternative, and that we just have to accept this lot. Mainstream feminism currently compounds that as it has been co-opted by those who prefer to sustain the status quo rather than challenge it.