O ser humano não suporta uma vida sem significado
Carl Gustav Jung
Amigos muito queridos e perspicazes me alertaram para algo que eu mesma não tinha percebido. Comecei esse blog com a intenção de divulgar informações que para mim foram valiosas e me deram outra perspectiva sobre quase todos os aspectos da minha vida. E talvez, na ânsia de divulgar tudo o mais rápido possível, de mostrar onde estou agora, o que defendo, no que acredito, acabei começando pelo fim, que não é exatamente um fim em si, mas um lugar muito diferente de onde estava há alguns anos. Ao fazer isso, acabei por não incluir ninguém no processo que me trouxe a essas conclusões, na trajetória que percorri. Por isso, vou dar alguns passos para trás e começar do começo, ir um pouco mais devagar. Porque ao fazer isso, ao excluir todos desse processo, tudo que digo parece ter o intuito de instituir uma nova verdade, um novo discurso de autoridade. E a intenção genuína dessa iniciativa sempre foi a de mostrar um caminho alternativo, mais um caminho possível dentre tantos outros que podem ser criados.
Por isso, pretendo começar nesse mês de agosto, indo até setembro provavelmente, uma série de textos sobre a pílula e sobre o trajeto que me levou não só a deixar de tomá-la, mas a descobrir uma discussão muito rica e pouco divulgada sobre as questões políticas envolvidas nessa decisão.
Episódio piloto
Quando tento pensar em como tudo começou, lembro-me da situação deplorável em que me encontrava. Recém saída de um mestrado estressante, sem bolsa, tentando sobreviver com freelas e bicos, aos trancos e quase pulando de barrancos, com sérios conflitos familiares, um namoro intenso que acabava de começar e uma vida sem rumo certo.
Aos poucos, o trabalho foi estabilizando, a vida foi entrando nos eixos, o relacionamento foi firmando. E foi aí, nessa estranha calmaria, nessa vida estável e confortável, que o mal-estar que sempre me acompanhou, que sempre esteve rondando, me engoliu. Como diz a citação daquela pessoa famosa que não lembro o nome e que devo estar citando errado: "É quando tudo vai bem que os reais problemas começam".
Comecei a engordar exponencialmente, sentir falta de ar, labirintite...Fui acometida por uma série de traqueítes, laringites, faringites; por taquicardias, bruxismo, rinites...Tinha pesadelos recorrentes e momentos de depressão, ataques de pânico e delírios de fim de mundo.
Ia à médicos muito bons, que passavam horas em consulta me explicando como comer bem, que pílula tomar, como descobrir nódulos nos seios, quais exames fazer anualmente, que probióticos eram bons para viver para sempre. Me diziam que eu estava estressada e que devia tomar um fitoterápico para acalmar os dentes que se degladiavam durante as noite de sono conturbado; que devia fazer atividade física para manter a forma, e deixar de comer carboidratos, uma semana sim, outra não; que todo mundo hoje em dia vivia assim, e que não devia me preocupar que a pílula que tomava havia matado algumas mulheres, porque todas as pílulas tinham esse risco em potencial.
Mas por incrível que pareça, foi um reles exame de colesterol que realmente mudou minha vida. Minto, um exame de colesterol e um de triglicérides, que se aglutinaram para formam a bela e perfeita gota d'água. Quando vi que esses exames estavam um pouco alterados e que a perspectiva era de que com a idade isso só iria piorar, tive uma espécie de epifania.
Nunca me senti confortável em depender de remédios para viver. Evitava-os ao máximo. Talvez porque sempre tive dificuldade em aceitar ajuda, química ou de outra natureza. Mas sentia lá no fundo da espinha uma convicção de que eu não era doente, não deveria estar doente e não ia estar doente. Não aos 27 anos de idade, não tendo sido bem criada e bem alimentada, não tendo acesso a todo tipo de informação e a capacidade de entender meu corpo. Não quando dançava, fazia yoga, caminhava. Não quando comia bem. Não quando havia me formado bióloga, mestre em antropologia nutricional. De que adiantava tudo isso se não para aplicar na minha própria vida, na minha própria saúde?
Estava há poucos meses em um processo terapêutico intensivo, mordendo a língua por todas as vezes que maldizia a psicanálise como o refúgio dos perdedores que não tinham amigos. E bastaram esses meses iniciais para desenvolver em mim a confiança para desafiar algo de que já desconfiava há muito tempo. Para acreditar que talvez eu, uma reles qualquer, uma reles mulher, pudesse saber mais sobre o meu corpo, sobre a minha saúde, do que o meu médico afirmava saber. E foi nesse momento que toda a minha formação científica se direcionou para mim mesma, para a minha saúde; foi quando virei meu próprio objeto de pesquisa. Decretei que seria a única pessoa autorizada a desenvolver experimentos em meu corpo.
Queria entender porque estava doente. Queria ir ao fundo disso tudo.
Investi meu tempo, meu dinheiro e minha energia em uma empreitada que só posso descrever como uma peregrinação, no sentido que Hakim Bey atribui ao termo no ensaio Superando o turismo. Ele descreve o peregrino como alguém que "[...] passa por uma mudança na consciência, e para o peregrino essa mudança é real. Peregrinação é uma forma de iniciação, e iniciação é uma abertura para outras formas de cognição".
Essa peregrinação me fez ver um mundo diferente, um mundo que meus olhos cansados não viam. Não viam aqui, não veriam em Istambul, não veriam em Beirute, não veriam nunca, nem em Marte, nem na Lua. Eu precisava arrancar esses velhos olhos e recriar o mundo.
Então, me joguei em um processo de desconstrução brutal e perigoso, incerta se sobreviveria, tamanha o ímpeto destrutivo que me tomou. Achei que nada fosse sobrar, que não haveria mais nada ali sob os escombros quando terminasse, mas o que descobri foi algo surpreendente. O que restou de tudo isso foi pura e simplesmente eu, eu mesma; não meu nome, não meu trabalho, não meus hobbys, não o que faço, não meu traços físicos, nada que fosse palpável ou descritível. Somente eu, minha intuição e meus desejos abstratos. Mas isso me parecia muito mais real, muito mais concreto do que tudo que já havia racionalizado, teorizado, tocado ou compreendido em minha vida. Depois dessa destruição em massa, sinto que esse ser em mim, esse ser que me habita, é finalmente livre.
Antes, o que pairava era essa sombra incansável, como se nunca fosse meio dia, como se nunca houvesse claridade absoluta, como se nunca houvesse aquele momento em que a sombra finalmente retorna e você pode pisar completa no chão, você e sua sombra; juntas e eternamente separadas.
Como só percebemos que estávamos dormindo ao acordar, ao ver a diferença entre a vida que pulsava em mim e o coma em que vivia anteriormente, só pude sentir uma raiva imensa, uma raiva pelo tempo que me havia sido tirado e por saber que tantas outras pessoas, assim como eu, ainda podiam estar adormecidas.
Vi, como esses meus novos olhos, que vivemos em uma sociedade necrófila, que estupra mulheres mortas; mulheres que ela mesma matou. E essa morte simbólica é anunciada muito cedo. Ela começa com a rejeição dos nossos corpos e de tudo o que nos diferencia do corpo padrão: o corpo masculino. Vi que, desde cedo, a nossa fertilidade é a nossa mais ingrata qualidade; que ser mulher, nesse mundo, é carregar uma doença crônica que a todo momento é alvo de escrutínio médico e científico. Vi também que tudo isso tinha seus porquês, suas abomináveis explicações sem sentido.
Mas tudo começou com um projeto científico. Nesse projeto, defini que o primeiro passo para recuperar a minha vida, seria recuperar o meu corpo.
E foi aí que decidi: vou largar a pílula!
continua....
Maissá! Que texto mais lindo! Mal posso esperar para ler o que vêm por aí... me fez questionar muitas coisas. Me identifiquei profundamente. De verdade...
ResponderExcluirOi Patricia! Fico muito feliz que você tenha gostado, e mais do que isso, se identificado. Digo isso porque nessa minha peregrinação, foram os relatos de experiências pessoais de outras mulheres que tiveram efeito mais transformador em mim, e me fizeram repensar muitas coisas. E para qualquer pessoa que escreve, sentir que você não está sozinho é a maior recompensa. Um beijo!
ExcluirMá, mto bom mm. Eu estou em busca de me reinventar, ou simplesmente me aceitar como sou (descobrir quem sou), me livrar das amarras sociais. Mesmo eu fingindo e tentando evitar elas me restringem e fazem com que não consiga gostar a pessoa que vejo no espelho. Adorei seu texto. Espero ansiosa pelo próximo.
ResponderExcluirOi Sandy, querida! Obrigada. Acho que estamos todas nessa busca. Esse processo de se aceitar, se reinventar, se descobrir e se libertar, acontece meio que todo ao mesmo tempo. É difícil, doloroso, mas também muito prazeroso. Acredito que quanto mais pudermos compartilhar nossas experiências, mais força teremos para enfrentar os nossos medos e nossas limitações. Saudades de você! Um beijão
ResponderExcluirSer mulher nunca fez tanto sentido...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirAlgumas amizades nos ajudam a dar sentido à muita coisa...Obrigada querida, pela sua!
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