Dourando a pílula: o gosto amargo dos contraceptivos hormonais

Este é o quarto texto da série Tudo o que descobri sobre a pílula e por que decidi não tomá-la
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Ao buscar informações sobre a pílula na internet, o blog de Holly Grigg-Spall, Sweetening the pill, foi um dos poucos lugares que encontrei onde o assunto era debatido de forma crítica e corajosa. Seu livro, Sweetening the Pill: or How We Got Hooked On Hormonal Birth Control [Dourando a pílula: ou como ficamos viciadas em contraceptivos hormonais - minha tradução], foi recentemente publicado. Eu tive o prazer de lê-lo e acredito ser uma leitura essencial para todas as mulheres que buscam se empoderar e tomar decisões informadas sobre sua saúde e contracepção. Depois de ler seu livro, perguntei a Holly se poderia entrevistá-la e ela gentilmente aceitou.


P: Por que as histórias de tantas mulheres, seus sentimentos negativos e reações à pílula, e os problemas de saúde que ela gera, são tão comumente descartados como queixas isoladas?

R: Ao longo da história, foi dito às mulheres que seus problemas de saúde são "coisas de suas cabeças". Isso costumava ser chamado de histeria, agora é chamado de "o poder da sugestão". As mulheres são tratadas como se fossem histérica e como se elas estimulassem a histeria umas nas outras.Além disso, as mulheres frequentemente se queixam sobre os efeitos colaterais da pílula de forma isolada. No consultório de um médico ou em uma clínica de planejamento familiar, por exemplo. As mulheres não estão reclamando sobre os efeitos colaterais como um coletivo. Na verdade, as mulheres parecem ser muito mais propensas a se culpar, a culpar seus próprios corpos por não reagir da maneira correta ao medicamento, ou por não ser complacente com o medicamento, do que são propensas a culpar o próprio medicamento ou aquele que as encorajou a tomá-lo. Por isso, elas muitas vezes não percebem sua experiência de efeitos colaterais como uma experiência coletiva de muitas mulheres, embora, certamente, o seja.Vivemos em tempos muito conservadores. As pessoas têm dificuldade em questionar instituições como a indústria médica ou corporações como as empresas farmacêuticas. O neoliberalismo do nosso tempo exige que vejamos a nós mesmos como agentes livres, que se movem pelo mundo sem ser afetados pelas pressões sociais e individualmente responsáveis por cada acontecimento em nossas vidas. O feminismo dominante atualmente dita que nos fixamos na Escolha. Portanto, se você faz uma escolha que acaba por ser ruim para você e impactar negativamente a sua vida, esse é um problema só seu.Em muitas outras áreas aceitamos as experiências dos indivíduos como válidas na maneira como eles explicam essas experiências. Por exemplo, se uma mulher trans diz que ela é uma mulher, nós aceitamos essa experiência como válida e a honramos como válida. Se alguém diz que é intolerante ao glúten e que o glúten o deixa doente, nós aceitamos isso como válido e nos reorganizamos para admitir esta experiência. No entanto, estamos vendo que quando as mulheres detalham suas experiências com contraceptivos hormonais, elas são dispensadas ou silenciadas. Os contraceptivos hormonais estão tão atrelados à nossa ideologia que até mesmo a honestidade é vista como uma ameaça ao status quo. 

P: Por que, como você diz no livro, é tão difícil criticar a pílula hoje em dia?

R: A pílula é vista como sinônimo da libertação das mulheres e do progresso da mulher na sociedade ao longo das últimas décadas. Quando discutimos métodos contraceptivos, muitas vezes, na verdade, significa apenas "a pílula". Tornou-se uma panaceia para qualquer doença que afeta as mulheres. Chegamos a um ponto em que o estado natural da mulher é considerado inerentemente doente (isto não nega o fato que algumas mulheres ficam doente por conta de sua biologia, mas não somos TODAS doentes porque somos mulheres, o que eu acredito que é a mensagem) .A crítica à pílula tem sido cooptada por grupos, como a direita religiosa, que são, muitas vezes, anti-aborto, anti-sexo antes do casamento e anti-contracepção como um todo. O movimento das mulheres tem permitido que essa conversa seja dominada. Isso significa que quando nós criticamos a pílula, somos vistas como se estivéssemos fornecendo munição para o "outro lado ". Nos EUA, a contracepção está sendo ameaçada por certas facções que aparentemente desejam tornar mais difícil para as mulheres obter conhecimento sobre e acesso à contracepção. Isso fez com que a esquerda liberal feminista ficasse ainda mais zelosa em seu entusiasmo pelos contraceptivos hormonais e menos aberta à discussões honestas sobre questões de segurança - mesmo quando essas questões são extremamente sérias, por exemplo, a situação com Yaz/Yasmin e a formação de coágulos sanguíneos.E não devemos esquecer que a contracepção hormonal é uma indústria de bilhões de dólares na qual as mulheres são pacientes que compram medicamentos por muitos e muitos anos de suas vidas. Nós não somos nada se não uma sociedade movida pelo corporativismo e isso desempenha um importante papel na maneira como pensamos sobre a pílula. A capacidade de penetração da indústria farmacêutica dentro da indústria médica e sua influência sobre os estudantes de medicina, médicos e as próprias mulheres não deve ser subestimada.

 P: Em sua pesquisa e durante sua própria experiência com a pílula, quais efeitos colaterais você descobriu que normalmente não são mencionados no debate convencional e quais você acha que mais a afetaram pessoalmente? 

R: Eu acho que o impacto psicológico e emocional da pílula nas mulheres raramente é discutido com alguma seriedade. Existe muito pouca pesquisa contínua envolvendo grandes grupos de mulheres, seguidas por um longo período de tempo. Há muito pouca atenção às mulheres que relatam estas questões. Não é apenas a depressão que precisa ser discutida, mas também a ansiedade e a anedonia (incapacidade de desfrutar de atividades geralmente apreciadas). O impacto pode se manifestar de várias maneiras, não necessariamente apenas em um quadro clínico de depressão, e essas formas podem ser muito prejudiciais para a qualidade de vida de uma mulher. Foram certamente esses problemas que me afetaram pessoalmente - ansiedade, ataques de pânico, anedonia, raiva. Além disso, o impacto negativo sobre a experiência sexual das mulheres  não é discutido o suficiente. Não só a libido reduzida como resultado da pílula, mas a falta de lubrificação, reduzida intensidade de orgasmo, dor durante o ato sexual e a probabilidade aumentada de infecções. 

P: Nas discussões do dia a dia podemos ver que a contracepção tem sido, de alguma forma, igualada à pílula e outros contraceptivos hormonais. O que você acha que contribuiu para isso?

R: O capitalismo. A contracepção hormonal gera muito dinheiro para algumas pessoas e se a marca "a pílula " pode se tornar sinônimo de contracepção como um todo, essas pessoas fizeram bem o seu trabalho. A contracepção hormonal nos tem sido empurrada como a ÚNICA opção, na verdade como a própria representante da Escolha. Além disso, a indústria médica, sob o domínio da indústria farmacêutica, apresenta os contraceptivos hormonais como a melhor opção para as mulheres - seja para a contracepção ou para questões relacionadas ao ciclo menstrual. A camisinha é vista como útil apenas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, não como método contraceptivo. Todas as outras opções são vistos como ineficazes, inconvenientes, intrusivas ou arcaicas. 

P: Muitas pessoas são cuidadosas ao tomar medicamentos e ficam alertas para seus efeitos colaterais, mas quando se trata da pílula, não a consideram como uma possível causa de problemas de saúde em mulheres que a estão tomando ou que já a tomaram. Como chegamos a não pensar na pílula como uma droga?

R: Nós a chamamos de "a pílula", como se fosse algo inócuo e inofensivo. Nós não pensamos nela como uma droga poderosa, ou como um produto médico. Por todas as razões mencionadas anteriormente, os contraceptivos hormonais têm dominado nossa conversa sobre contracepção. Tornou-se parte da vida moderna para as mulheres. Essencialmente, nossa cultura vê os corpos das mulheres como inerentemente doentes e defeituosos. A pílula corrige os órgãos reprodutivos problemáticos até que eles sejam necessários para o ato socialmente útil de proporcionar uma gravidez. Vemos nossos ciclos antes da gravidez como um incômodo, a causa da doença e da dor, e eles são usados ​​contra nós como indicação de nossa inferioridade em relação aos homens. A pílula é entendida como algo que nos faz melhores. Melhores mulheres. É discutida quase como uma vacina contra o câncer, como a razão da igualdade conseguida pelas mulheres na sociedade, como a razão que as faz, hoje, trabalhar ao lado dos homens nas mais diferentes profissões, até como a razão pela qual as mulheres são felizes. Foi dado à pílula grande parte do crédito pelas conquistas das mulheres ao longo da história. A pílula foi a primeira droga de estilo de vida e é uma porta de entrada que faz com que as mulheres vejam as intervenções médicas não como uma opção, mas como uma necessidade em todos os estágios- menstruação, fertilidade, gravidez, parto, menopausa. 

P: Visto que, como você afirma, "a nossa relação com a pílula é inseparável da nossa relação com a menstruação", o que você acredita estar por trás dessa tendência atual que incentiva as mulheres a suprimir a menstruação e como isso está ligada à pílula?
 
R: A nossa relação com a menstruação está indissociavelmente ligada à nossa relação com a pílula. A pílula nos livra da menstruação e a substitui por sangramentos de escape. A pílula é prescrita para mulheres jovens para "tratar" os ciclos menstruais difíceis e "regular" os seus ciclos. Nossa sociedade perpetua um tabu menstrual que liga a menstruação à vergonha e, portanto, livrar-se dela é visto como algo positivo. Somos informados de que não há razão médica para menstruar, o que não é verdade. Antes da proliferação dos contraceptivos hormonais a menstruação era vista como o quinto sinal vital de uma boa saúde.Vemos a menstruação como inconveniente, porque a nossa sociedade a torna inconveniente. Não é possível menstruar na praia, de férias. Não é possível tirar um tempo se você tem cólicas. Devemos estar ligadas e disponíveis, em todos os sentidos, em todos os momentos. Controlar a menstruação é também uma extensão do controle de outros aspectos do corpo feminino - sejam as flutuações de peso, ou os pelos das pernas e das axilas.Grande parte das justificativas para suprimir a menstruação com o uso de medicamentos remonta ao trabalho do Dr. Coutinho [médico brasileiro] e ele estava intimamente envolvido com o desenvolvimento da injeção e do implante - a contracepção hormonal que agora gera um monte de dinheiro. Parece que acreditamos que a ciência existe separadamente da nossa ideologia. Isso não é verdade, a ciência muitas vezes se propõe a provar o que é necessário provar. 

P: Por que as reações à pílula masculina e feminina são tão diferentes, e por que a pílula masculina não foi tão pesquisada e promovida quanto a pílula feminina?
 
R: Acredita-se que a pílula feminina está "tratando" um problema - a fertilidade e uma possível gravidez indesejada. A gravidez é, portanto, a doença e a pílula é o remédio ou cura. Já a pílula masculina acredita-se que seria uma droga que não está tratando diretamente um problema. Portanto, os efeitos colaterais não serão tolerados, por parte da indústria médica, ou pelos homens - a droga não é necessária e por isso um impacto negativo é levado em consideração com mais seriedade. Os homens não engravidam. Não se considera que os homens também sofram as consequências de uma gravidez indesejada - consequências econômicas, sociais, de saúde também. Eles também podem sofrer consequências se sua parceira usa o contraceptivos hormonais e sofre efeitos colaterais.Esse debate mostra como nós, como uma sociedade, sentimos que a prevenção da gravidez é responsabilidade da mulher e que os homens não têm qualquer ligação intrínseca com a ocorrência de uma gravidez além do fornecimento de esperma. Há muito misoginia entranhada no sistema médico. É uma linha de pensamento presente em todas as outras áreas da nossa sociedade - como vemos homens/pais em relação às mulheres/mães. É por isso que vemos os homens que cuidam de seus próprios filhos como  "babás" e as mulheres que cuidam de seus filhos como desempenhando seu papel correto e natural.

P: No livro, você sugere um interessante paralelo entre a aceitação da cesariana e da pílula pelas mulheres. Você poderia falar sobre isso brevemente?

R: Como eu disse antes, a pílula é uma droga que funciona como porta de entrada, que faz com que as mulheres considerem mais aceitáveis as constantes intervenções médicas às quais são submetidas ao longo dos diferentes estágios de suas vidas, incluindo a gravidez e o parto. Temos uma abordagem padronizada à contracepção, à gravidez e ao nascimento, porque é o método por meio do qual se faz mais dinheiro ou se economiza mais dinheiro de formas que beneficiam o sistema.Tratar o nascimento como um procedimento cirúrgico nem sempre é saudável para a mulher ou o bebê. Tratar TODOS os nascimentos como procedimentos cirúrgicos certamente não é do interesse de todas as mulheres. Da mesma forma, tratar a fertilidade como uma doença e suprimir o ciclo menstrual com drogas poderosas não é do melhor interesse de muitas mulheres. Sim, às vezes as drogas e, por vezes, a cirurgia são necessárias, mas não devem ser vistas como um padrão de atendimento para qualquer situação.

P: Hoje em dia, existem empresas farmacêuticas que tentam desenvolver outra droga para tratar a falta de desejo sexual das mulheres. Qual visão de sexualidade feminina está implícita neste discurso que dá apoio ideológico para o uso generalizado de contraceptivos hormonais? 

R: Eu acredito que é uma visão que sugere que a quantidade é mais importante do que a qualidade. Enquanto as mulheres estão tendo relações sexuais com frequência, enquanto os homens também estão, então não importa se o sexo é realmente agradável. A ideia é fornecer um medicamento que faz com que as mulheres "queiram" sexo com mais frequência, com a compreensão de que mais sexo será equivalente a melhor sexo. Normalmente, os estudos investigam quantas vezes um casal está fazendo sexo e não como eles se sentem sobre o sexo que eles estão fazendo.Hugh Hefner [fundador da Playboy] esperava que a pílula tornasse as mulheres mais disponíveis sexualmente - pois acreditava-se que a principal razão pela qual uma mulher recusaria sexo seria porque ela estava com medo de engravidar -  e mais "sexy". Sexy é exterior e não interior. É sobre as mulheres se comportarem de certa maneira para excitar os homens.Há uma pressão sobre homens e mulheres para querer e fazer sexo o tempo todo. Se você não está fazendo isso, então há algo errado com você que precisa ser corrigido. É claro que por trás do desenvolvimento desta droga está o dinheiro, e muito dinheiro vai ser feito se você considerar como é ampla a definição de disfunção sexual atualmente e quão ampla pode se tornar no futuro. Nós todos poderíamos ser vistos como sexualmente disfuncionais e precisando ser medicados dentro de uma década. 

P: O que significa para você ser feminista? Quais são as batalhas que se aproximam e quais são seus planos para o futuro? 

R: O feminismo tem de deixar de ser um servo do capitalismo. Precisamos parar de ver o sucesso das mulheres nos estreitos termos capitalistas de status corporativo e ganho econômico como a totalidade do movimento feminista. Eu não quero mais CEOs ridiculamente bem pagos que também são do sexo feminino. Eu quero que a desigualdade social seja abordada. Eu quero a redistribuição da riqueza que hoje está nas mãos de uns poucos. O feminismo deve ser sobre mudança social e revolução, não sobre expandir escolhas para as mulheres na economia de mercado. Eu sou uma feminista, mas eu também sou um humanista, eu quero melhor qualidade de vida para homens e mulheres, para todos nós, porque o que temos agora não é sustentável e é totalmente desumano. Chegamos a um ponto em que não acreditamos que haja uma alternativa, e que nós apenas temos que aceitar esse destino. O feminismo tradicional atualmente tem sido cooptado por aqueles que preferem manter o status quo em vez de contestá-lo.

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