Águas coloridas


Quando era pequena, tinha muito medo da água. Para entrar na piscina, só com duas boias, uma em cada braço, e mais uma ao redor da cintura. Não confiava plenamente nessa tecnologia, ainda tinha medo de me afogar, mas desde criança acho que pressentia que nas coisas da vida há duas opções ruins: entrar com medo e equipada, ou não entrar. Meu pai sempre foi um lugar de águas misteriosas, meio exóticas. Sua língua nunca coincidiu com a minha, seu mundo era cheio de sons que não formavam palavras, ou frases, como uma espécie de música. Aprendi a detectar, pelo tom de sua voz, quando ele estava prestes a terminar uma de suas longas conversar em árabe. É agora, ele vai desligar o telefone! Eu e meus irmãos nos olhávamos e ríamos, e comemorávamos internamente nosso domínio sobre essa realidade. A língua é quase toda feita de entonações, de emoções. Acho que por isso nunca busquei dominar aquelas palavras. Sua escrita, esses desenhos tão bonitos, até hoje não sei decifrar. Na minha casa se falava o português, mesmo ele, com seu sotaque. Nunca tentamos ser uma família bilíngue, o árabe era um outro mundo, distante, assustador, bonito. Aprendi a contar até cinco, alguns palavrões e falsos cognatos, o nome de alguns alimentos, e que tudo ali deveria ser lido ao contrário, da direta para a esquerda.

Como toda infância e adolescência, a minha foi estranha à sua maneira. Entre ter que debater teorias filosóficas complexas para justificar minhas idas às baladas, aprender desde cedo que o mundo é feito de dívidas, e por isso não devia temê-las, até descobrir que o amor se mantém de formas estranhas à distância, como um móbile, pendurado, um pouco triste, um pouco comovente. Meu pai invertia o mundo, nada que eu dissesse da esquerda para a direita era suficiente. Batalhei para inverter meu mundo também. Havia algo, algo que ele via, lá onde o Sol nasce e caminha, que sempre me despertou profunda curiosidade. Mas como a filha de James Joyce, ao tentar escrever o que o pai escrevia, acabou psicótica, eu sempre tive medo das águas coloridas em que meus pais pareciam flutuar tão bem.
"Mas aí onde você nada, ela se afoga." Foi o que Jung disse a Joyce, quando ele foi consulta-lo, preocupado com a filha.

Um dos maiores presentes que ganhei do meu pai, foi o que ele não me deu: a tradução incompleta, a distância impossível de atravessar. De alguma forma, por essa clareza, a água já não me assusta como antes. Quando leio seus textos (pois ele é mais ativo que eu nas redes e na escrita), com todas as distorções que o Google tradutor é capaz de incorporar, entendo pouco, mesmo entendendo muito, e preciso inventar. Nunca perco a curiosidade e a desconfiança de que há sempre mais ali. Nesse homem que lê Nietzsche, profundamente, até as entrelinhas, e ri alto, muito alto, como uma montanha feliz, das piadas do Mr. Bean.
Esse é um texto dele, repleto de reflexões filosóficas e teológicas. Ou um belo desenho e uma música, como uma criança poderia sonhar.
رأى نيتشه أن هناك " قدر كبير من القسوة الدينية" وهذا أكثر من بديهي .كانت هناك طرق مختلفة وسلالم متعددة للتقرب من الآلهة في الديانات ألما قبل تاريخية والبدائية. ولكن اعنف تلك الطرق كانت التضحية بالبشر لإرضاء الهتهم ، وربما حتى التضحية باحبهم لقلوب الجماعة أو بالفتاة الأكثر جمالا ! أو كما حدث في المشهد الرهيب عندما ضحى الله نفسه ب "ابنه الوحيد" على الصليب ! وبالمقابل كانت "نذور" تقديم الثمار الأولى لآلهة "طيبة" من طبيعة الأعراق البريئة. وفي جميع الديانات التي تعود إلى عصور ما قبل التاريخ، كانت الآلهة تجسد وتعبر عن الوعي الخاص للعالم لكل جماعة بشرية على حدة. لكنه خلال الحقبة الأخلاقية للبشرية، طلب من المؤمنين التضحية للإله بأكثر غرائزهم عنفًا ، أي التضحية ب"الطبيعة الحيوانية " تحت مراى النظرة القاسية "الشريرة" للكهنة التي يلتمع بها كل ما هو "ضد الطبيعة". ولقد اكتشف اب الأنبياء ابراهيم الخليل "حقيقة" الله في اللحظة التي باشر فيها بالتضحية باعز ما لدية ( إبنه اسحاق أو اسماعيل ) لا فرق. ففي تلك اللحظة بالذات فإنه قطع مع آثار الآلهة القديمة ودخل في رحاب الله الواسعة!
"فماذا بقي ليتم التضحية به؟" يسأل نيتشه. ايكون من الضروري التضحية أخيرا بكل ذلك المزيج من التناغم الخفي بين المقدس والوهم . هذا المزيج الذي يؤمن المواساة والطمأنينة والأمل ؟ ايكون مطلوبا التضحية بالإنسان نفسه؟. إما في الشهادة أو بانتظار نهاية العالم مع عودة السيد المسيح والمهدي المنتظر .ثم الذهاب إلى العدم المحض. هل بلغت هذه النزعة البدائية في الإنسان حد التضحية بالله "سبحانه" من أجل لا شيء ؟ هل حجز هذا اللغز المتناقض من القسوة الأخيرة القصوى لإنسان الحضارة التقنية ولإرادة العدم !
ثمة سؤال يطرح نفسه بالحاح. الا تكون الديانات في العمق هي مشروع حرب دائمة دون هدف غير التضحية والاستشهاد؟ هل من الضروري أن يكون الدم هو الوجه الآخر للمقدس؟
لكل الاصدقاء ولكل المؤمنين
عيد اضحى مبارك وكل عام وانتم بخير

Fracassados

Vídeo mostra erupção vulcânica no Monte Sinabung, na Indonésia ...

Erupção Monte Sinabung, Indonésia, agosto 2020. 

Agosto, mês de explosões. Dia 4, Porto de Beirute, um depósito que armazenava nitrato de amônio. Rússia, dia 10, um posto de gasolina em Volgogrado. O vulcão Sinabung na Indonésia, inativo por séculos, até 2010, quando voltou a entrar em atividade. Em 10 de agosto de 2020, lançou uma nuvem de cinzas de 5km de altura. Coincidências, talvez. Curioso, pelo menos. Quando estamos todos in, para dentro, tantos ex, para fora. Explodere, fazer sair por meio das palmas, o significado original do latim vem do teatro, já que os maus atores eram expulsos do palco por meio da violência dos ruídos: gritos, vaias, palmas. Rejeitar. Golpear com os pés na dança, romper as ondas ao nadar. Precisei fazer essa costura, amarrações, para entender o imenso impacto desses eventos em mim.

Sou filha de pai Libanês. Beirute não é só um lugar exótico, é parte da minha herança.

Sempre fui fascinada por grandes forças, terremotos, tsunamis, vulcões. Quando era mais jovem, queria ser caçadora de tornados. Me entretenho com horas e horas de imagens de destruição, num misto de compaixão pelas vidas que são inevitavelmente afetadas, e de obsessão, assombro, pela pedagogia da tragédia.

Mas hoje minha vida é dançar, golpear o chão com os pés, romper as ondas do mar. Agradecer os aplausos, sofrer sua falta, fazer ruídos violentos.

Tantos ex, nesses dias in.

Parte da minha vida é dedicada a deixar de temer essa energia extrusiva, ‘para fora’, tão assustadora dentro do lar, na pequenez do meu corpo, das minhas tantas casas. Histórias infantis, paredes de palha, de madeira, de cimento. Qual delas irá resistir? E se o sopro vem de dentro?

As costuras da escrita, esses labirintos de crochê, me levam, quase sempre, ao útero, minha primeira casa, o dentro original, meu primeiro dentro. E o trauma do primeiro sair.

Diz-se que o amor é uma invenção, nascemos com ódio, e só! Com uma ânsia de vida que precisa de violência para se separar do corpo que nos nutriu. A grande explosão. Big Bang: assim começa todo universo, assim começou o meu. A fusão é essencial, mas quando não se rompe aquele fio, quando um ser se resigna a viver a fantasia do útero eterno, com as pernas encolhidas, sufoca-se em posição fetal. Morre ao tentar se acalmar, ao tentar se apequenar para ficar.

Eu, como boa menina, não saí com facilidade. Tive problemas com a raiva desde o útero. O medo de desagradar, todas aquelas ambições de espaços maiores, a arrogância de considerar aquele lugar acolhedor e orgânico, meu primeiro lar, inadequado à minha recém-adquirida grandeza. Até hoje não sei bem cuidar de uma casa, com medo de que vou destruí-la. Por não saber como sair, também não sei como ficar. Repouso e atividade em um enlace inescapável. Não se soluciona um, sem mergulhar no outro.

“[...] as imagens do repouso, do refúgio, do enraizamento, [...] todas elas sugerem um mesmo movimento em direção às fontes do repouso. A casa, o ventre, a caverna, por exemplo, trazem a mesma grande marca da volta à mãe.”

A Terra e os devaneios do repouso – Ensaio sobre as imagens da intimidade.

Gaston Bachelar.

Ninguém pensa na ira, na soberba necessária para sair da barriga. Não se fala muito disso, que os bebês não são inofensivos. De um dia para o outro, considerar-se apto a dar um salto evolutivo, respirar, viver na atmosfera. Pura e sadia arrogância. Depois, passar meses, anos, tentando se separar ainda mais, sofrendo para se contornar, defender suas próprias barreiras, sua ira como arma, contra esse retorno que se chama amor. Essa série de reparos constantes que fazemos ao destruir os laços, a cada segundo, quando viramos outra pessoa.

“[...] No empuxo da aceleração geral e da hiperatividade desaprendemos também a ira. [...] A ira, ao contrário, coloca definitivamente em questão o presente. Ela pressupõe uma pausa interruptora no presente. É nisso que ela se distingue da irritação. A dispersão geral que marca a sociedade de hoje não permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.”

Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han.

As mitologias ao redor do meu nascimento são várias e confusas. Havia um cordão ao redor do meu pescoço, havia uma mulher, minha mãe, incrivelmente forte e inteligente, mas jovem e exausta, num mundo de mulheres exaustas, de autoridades que diziam que eu estava atrasada. Havia cirurgias e todos aqueles seres de jaleco que queriam ser capazes de dar à luz, com facas e anestesias. Sempre pensei que se tivessem me dado mais tempo, eu teria saído sozinha. Mas hoje em dia, percebo, em todas as minhas repetições patológicas, que eu ainda não existia. Esse corpo que não existe precisa que todo o universo conspire, que todo a história se alinhe. Esse corpo de mulher, que já se sabia rosinha, cuidador, paciente, podia esperar, devia esperar. Devia ficar. Ou, esse corpo de mulher, que está ali, a seu tempo, criando pulmões, esperando sua hora, precisa ser apressado. As duas fantasias me servem bem, daí a vantagem das fantasias.

“Imaginar será sempre maior que viver. O trabalho do segredo vai infinitamente do ser que esconde para o ser que se esconde. O cofre é um calabouço de objetos. E eis que o sonhador sente-se no calabouço de seu segredo. Gostaríamos de abrir e gostaríamos de nos abrir.”

Gaston Bachelar. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria.

Autonomia ou amor? Autenticidade ou submissão? Ex? In? Posso ir até aquele cantinho, engatinhando e ainda ser amada, cuidada? Ainda vou poder viver? Posso ir mais longe ainda e voltar sem retaliações? Na dúvida, fica-se. Talvez seja mais seguro. Se eu ficar, tenho controle. In-volução. Observo, então, atentamente, obsessivamente, qualquer sinal dessa mãe, dessa figura materna, desse pai que ela idealiza. Observo-os, estudo-os, sou uma espiã sem linguagem, ou sem língua, não sei. E crio inúmeras teorias, todas falsas, todas teorias do medo e da sobrevivência, teorias mínimas, como uma criança, pequenas, distorcidas. Testo suas reações aos meus desejos, às minhas ações, aos meus deslizes, e como um cientista incompetente, registro tudo que corrobora minhas fantasias invertidas de grandeza, de que minha raiva é destrutiva, de que os adultos são frágeis, de que eu posso cuidar deles.

Gaston Bachelard em ‘A terra e os devaneios do repouso’, argumenta que “a vontade de olhar para o interior das coisas torna a visão aguçada, a visão penetrante. Transforma a visão numa violência. Ela detecta a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas. A partir dessa vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos, devaneios que formam um vinco entre as sobrancelhas. Já não se trata então de uma curiosidade passiva que aguarda os espetáculos surpreendentes, mas sim de uma curiosidade agressiva, etimologicamente inspetora. É esta a curiosidade da criança que destrói seu brinquedo para ver o que há dentro. (...) Não retemos senão a necessidade de destruir e de quebrar, esquecendo que as forças psíquicas em ação pretendem deixar os aspectos exteriores para ver outra coisa, ver além, ver por dentro, em suma, escapar à passividade da visão.”

A criança nasce mundo, ela é toda, ela é tudo. Quaisquer sentimentos e ações dos cuidadores são responsabilidade dela. A não ser que ela possa ser. E para isso, é preciso que esse ódio não seja temido. A criança não sabe nada sobre a guerra que estoura, sobre o luto, sobre a epidemia, sobre a misoginia. Ela mede: se pode ser, pode ir, pode voltar. Pode viver. Mas ir não é uma relação espacial, é uma errância subjetiva.

É preciso sobra existencial, gordura social, para que esse ódio seja absorvido. Para que essa curiosidade investigativa, violenta, seja vista como positiva. A criança é tão pequena e indefesa que teme matar, precisa delirar sua impotência. É tão louca que se pensa mais forte que toda aquela carne que a ampara, mesmo que mal. E talvez seja. Por que é pequena em matéria, mas uma fundura de sombras e medos, um terror para os adultos. Foi projetada para enlouquece-los com seu choro, com suas demandas. Amar é dar o que não se tem. É dar sua falta. Aceitar que o choro de um bebê ecoe naquele lugar sem peso que se aproxima da loucura.

Sheita Heti, no livro Maternidade (p.28), resume bem esse sonho de toda criança, de todo adulto:

“Este será um livro para evitar as lágrimas futuras – para evitar que eu e minha mãe choremos. Se, depois de lê-lo, minha mãe parar de chorar de vez, poderemos dizer que o livro foi bem-sucedido. Eu sei que não é o trabalho de uma criança impedir que sua mãe chore, mas não sou mais criança. Sou escritora. A transformação pela qual passei, de criança para escritora, me deu poderes – quero dizer que poderes mágicos não estão tão longe assim das minhas capacidades. Se eu for uma escritora boa o bastante, talvez possa fazê-la parar de chorar. Talvez eu consiga entender por que ela está chorando, e por que eu também choro, e minhas palavras possam nos curar.”

Não tenho crianças, mas já fui uma, e como todos os adultos, continuo sendo. E toda essa operação complexa de ser criança e adulto, num mesmo corpo, brincar e não se matar, arriscar, conhecer, e ainda garantir algum tipo de segurança e conforto, para que as próprias brincadeiras sejam possíveis, é dos desafios que mais me surpreenderam quando vi que a vida adulta não era nada como a fantasia que havia comprado na infância e adolescência. Não comprei à toa, claro, me foi vendida com um objetivo muito claro, matar a vida, matar esse ódio que é vida, essa ira que é separação, que é diferença, esse olhar violento que tenta quebrar os próprios brinquedos, tenta se quebrar e olhar para dentro. Essa ira de que falo, se fosse sentido, não se converteria tão facilmente nas violências cotidianas que vemos, contra tudo que demonstra ser buraco, ser vazio...tudo que não sou eu. Rupturas são violentas, e a violência, em seu devido lugar, é vital. Evita todas as outras violências deslocadas, da covardia, da projeção no outro. Bela violência de viver, sem precisar matar ou morrer. (Na maioria das vezes.)

Tenho várias lembranças da raiva, a mais curiosa, numa briga com uma de minhas melhores amigas no jardim de infância, para sentar no chão, no primeiro lugar da fila. Senti um vazio. Sentia a falta dela. Senti esse misto que chamam gozo, de um prazer com dor. De impor minha vontade, minha competitividade. E estar lá, só, no lugar que queria. Depois, voltamos a brincar. Eu com meu universo expandido, ela um pouco mais longe de mim. Sabia que teria que passar um tempo consertando as paredes do que havia destruído.

O amor seria, assim, uma reconstrução, não é natural ou instintivo. Sempre um ir de novo. Uma reparação. Retorno ao lugar do ódio, agora livre do medo de se afastar e se perder. Esse aconchego que só existe quando há duas peles, quando há um objeto que se encapsula, e cria o calabouço do seu próprio segredo. Cria o espaço ao redor de si para que outro venha com seu olhar, com sua curiosidade agressiva, no melhor sentido do termo. Não à toa, o ex de existir.

Amar é o privilégio do fracasso! O amor é para os bons cientistas.

 

 

Esse texto não é sobre dor. É sobre liberdade.

"Inez". Saul Leiter, 1947.


Acontece que eu não ando muito bem. 
Sabe quando você acorda num dia qualquer, e tudo parece fora de lugar? 

Esses dias eu li o texto de um psicanalista que defendia, com luvas de pelica, uma verdade inconveniente: a vida não tem sentido. Ok, é bem provável que eu não tenha entendido nada. E que alguém me indique filosofia. Mas não me importam, agora, as teorias consagradas.  

Por exemplo, eu conversava com uma amiga. É sobre uma coisa que contam pra gente: "seja melhor". E eu só consigo pensar: melhor pra quem? 

Acontece que às vezes reprimimos dentro de nós aquela vontade selvagem de xingar. Ou de dizer não em pelo menos 3 idiomas. Porque "minha mãe vai sofrer". Porque "não quero perder essa oportunidade". Porque: "quero ser uma pessoa melhor". 

Melhor pra que?

São tantos os tecidos jogados por cima de nós que a gente se perde embaixo deles. E, se eu não me conheço, quem é essa que apresento aos outros? 

É. Os outros quase nunca têm uma chance sequer. Falo mais dos adultos. De jogar um "não" em direção a alguém e ver ele ser transformado em algo bonito. "É um verdadeiro ato de amor", diria meu analista. Acontece que nos iludimos sobre nosso poder sobre os outros [embora, pasmem, sejamos seres perfeitamente superáveis]. 

Ao mesmo tempo em que... não é fácil se despir. Separar aqueles tecidos que nunca vestiram lá muito bem. Reconhecer aqueles que, ao contrário, se fundiram à nossa pele. E acolher aqueles que já acompanham a gente tem tanto tempo... às vezes, antes de nós, na ancestralidade. 

Acho que não há nada mais difícil do que se respeitar. Culpa. Mas "haverá pior solidão do que a ausência de si?"

E tem aquelas morais inquestionáveis. E tem aqueles valores que sempre defendemos. E tem também aquela sentença: "a vida é assim".

Mas olha só. Eu trago uma verdade conveniente sobre essas universalidades. E eu acho que você já sabe: elas nasceram de uma meia dúzia de homens. Brancos. E, cá entre nós, elas não são muito mais do que instrumentos para domesticar. Controlar o corpo das mulheres, como tantas já gritaram nas ruas e na cara dos homens universais. Controlar os corpos. E não existe valores iguais para corpos diferentes. Uma outra materialidade exige uma outra consciência. 

Mas, olhe. É mais do que isso. É sobre acreditar no que te dizem sem antes se perguntar, assim, honestamente: melhor pra quem? É sobre encontrar em cada dia aquele lugar em que você se reconhece, intimamente - então essa é minha criança! - e ir gastando o tempo nisso, tempo com ela. 

Quem sabe se pararmos de escutar por alguns instantes, se silenciarmos um pouco... Talvez esse seja um primeiro passo para a nudez. Se despir pode ser revolucionário. 

Eu vi um filme esses dias. 
Um garfinho diz a uma faquinha: -- "Fique calma, eu vou te explicar tudo". 
Ao que a faquinha pergunta, sem hesitar: --"Por que estou viva?"
E ele responde: -- "Não sei." Um ato de amor.

Então. Que seja a vida só o espaço entre a concepção e a morte. Mas quando estivermos todos apodrecendo debaixo da Terra, dentre um vasto amontoado de ossos, vou gostar de pensar que faço parte daqueles que, quando em vida, se despiram e se apresentaram muito nus, primeiro, para si mesmos; e depois para os outros. 

Gastar esse tempo, tão breve que é, carregando a beleza, a leveza e a potência da minha total insignificância.

Poda


Scordinia - inflorescências

Sempre tive dificuldade em cuidar de plantas, mas, por alguma razão, achava importante ter essa graduação da natureza, que me mostrasse que sou capaz de cuidar de uma vida estranha, que não a minha. A falta de antigos círculos de mulheres, de contato com crianças, gravidezes, mortes, me afastava de uma forma incomoda dos ciclos da vida. Não à toa, quis ser bióloga, achei que a vida  estaria ali. Mas é claro, não estava, por que fomos banidos, como no paraíso de Milton, dessa plenitude, da falta de consciência da morte, da entrega plena aos instintos. Há cultura, há linguagem. Estamos tão longe daquela tribo, daquela comunidade. Aprendi a aceitar que certas plantas morrem nas minhas mãos, não porque eu não consiga compreender do que precisam, mas por eu ser incapaz de aceitar suas necessidades, sua fraqueza e sua carência, suas demandas sobre mim. A hortelã sempre precisou de muita atenção - tanta rega, todo dia, aquele olhar desapontado, murcho, precisando de mais, de algo que eu não conseguia dar. Por acidente, percebi que a poda radical é um cuidado, algo necessário, que eu era capaz de fornecer, com prazer. Vi plantas que achei mortas, das quais podei todas as folhas num instinto egoísta de retirar da minha vista tecidos amareladas, murchos ou doentes. Não esperava muito. Não esperava nada, só sentia prazer em mutilá-las; retirar-lhe as folhas, os galhos, as flores secas. E para minha surpresa, algum tempo depois, rebrotavam com tanta vitalidade, como um presente, mostrando que minha fúria lhes dava força, minha falta de tato lhes trazia vida. Espero que eu venha a ter um filho um dia, e seria feliz com essa noção de maternidade. Pois a natureza é muito maior do que eu. No dia em que percebi isso, fui tomada por uma vontade súbita de cortar os cabelos, curtos, em casa, a seco, confiando que uma força dormente ganharia espaço, e novos seres brotariam em mim. 

Corpus Christi

Kitagawa Utamaro

Esses rios de ar, de água, não me deixam parar. Atravessam uma carne que resiste. A realidade dela mesma é um limite, ela é um limite, a carne, que concentra o desejo em feixes contráteis, capazes de prazer, de lutar contra a dissolução no prazer absoluto - a morte, a loucura. As duas me atraem, permitir-se ceder, sair do mundo dos homens, de suas crises e contradições. Sair do mundo dos vivos, de suas moléculas entrelaçadas, dependentes, sofríveis. Existência plena, mineral.
Ídolos liberam em minha direção fios de aço, que se agarram em meus punhos para que eu possa descansar, enquanto o resto desse corpo é arrastado e minha cabeça rachada sangra.
Única forma de dormir, sono sem si.
Sono piedoso que liberta dos desejos. Desejos que giram roldanas, cordas e polias lubrificados com graxa preta, dentro do meu estômago. Cria sons impossíveis de violino, em uma carne ensanguentada - bile, gordura, ácidos e animais não digeridos. Mas as cordas soam como linha tesa, fio cortante. É duro suportar essa perpétua excitação nas extremidades, nos membros, no útero, no pescoço, na língua, nos lábios - todos eles-, nos nós concentrados de eletricidade que se acendem como vaga-lumes, em um triângulo quente que brilha entre minhas coxas.

É um mundo perigoso para pulsões fluorescentes, femininas, atraindo a atenção de predadores. Há que se contar com a proteção desse veneno próprio dos animais aposemáticos, que brilham cores vivas contra listras escuras, pois podem matar. Habilidade necessária, saber matar, com a própria carne, macia; sem dentes, sem garras. Evoluir esse veneno que liberta da camuflagem. Em algum momento um animal deve decidir que estratégia aprimorar para sua sobrevivência: forjar todas as cores opacas da floresta, das folhagens, do fundo do mar e, junto com o resto da matéria, assentar-se com as plantas, os fungos e os animais, em tons de marrom e verde; ou sintetizar venenos em sua pele úmida e brilhante. Há algo de sensual nas duas escolhas: a discrição da fusão com o ambiente, perpétua orgia esverdeada; e o apelo do objeto que se permite devorar pelo olhar, alimentando o desejo e sufocando-o, simultaneamente.

Cada animal sonha com aquilo que perde, ao ceder-se para a vida.

O vislumbre de uma mordida verde fluorescente penetra os sonhos de famintos seres marrons, que se debatem ao perceber que mordiscam carne proibida.

Uma cobra reluz na espera de outras peles venenosas para tocá-la sem risco de morte, penetrá-la neutralizando perigos, fazê-la sentir-se inofensiva.