Quando era pequena, tinha muito medo da água. Para entrar na piscina, só com duas boias, uma em cada braço, e mais uma ao redor da cintura. Não confiava plenamente nessa tecnologia, ainda tinha medo de me afogar, mas desde criança acho que pressentia que nas coisas da vida há duas opções ruins: entrar com medo e equipada, ou não entrar. Meu pai sempre foi um lugar de águas misteriosas, meio exóticas. Sua língua nunca coincidiu com a minha, seu mundo era cheio de sons que não formavam palavras, ou frases, como uma espécie de música. Aprendi a detectar, pelo tom de sua voz, quando ele estava prestes a terminar uma de suas longas conversar em árabe. É agora, ele vai desligar o telefone! Eu e meus irmãos nos olhávamos e ríamos, e comemorávamos internamente nosso domínio sobre essa realidade. A língua é quase toda feita de entonações, de emoções. Acho que por isso nunca busquei dominar aquelas palavras. Sua escrita, esses desenhos tão bonitos, até hoje não sei decifrar. Na minha casa se falava o português, mesmo ele, com seu sotaque. Nunca tentamos ser uma família bilíngue, o árabe era um outro mundo, distante, assustador, bonito. Aprendi a contar até cinco, alguns palavrões e falsos cognatos, o nome de alguns alimentos, e que tudo ali deveria ser lido ao contrário, da direta para a esquerda.
Mulher: condição crônica
Águas coloridas
Fracassados
Erupção Monte Sinabung, Indonésia, agosto 2020.
Agosto, mês de explosões. Dia 4, Porto de Beirute, um depósito que armazenava nitrato de amônio. Rússia, dia 10, um posto de gasolina em Volgogrado. O vulcão Sinabung na Indonésia, inativo por séculos, até 2010, quando voltou a entrar em atividade. Em 10 de agosto de 2020, lançou uma nuvem de cinzas de 5km de altura. Coincidências, talvez. Curioso, pelo menos. Quando estamos todos in, para dentro, tantos ex, para fora. Explodere, fazer sair por meio das palmas, o significado original do latim vem do teatro, já que os maus atores eram expulsos do palco por meio da violência dos ruídos: gritos, vaias, palmas. Rejeitar. Golpear com os pés na dança, romper as ondas ao nadar. Precisei fazer essa costura, amarrações, para entender o imenso impacto desses eventos em mim.
Sou filha de pai Libanês. Beirute não é só um lugar exótico,
é parte da minha herança.
Sempre fui fascinada por grandes forças, terremotos,
tsunamis, vulcões. Quando era mais jovem, queria ser caçadora de tornados. Me
entretenho com horas e horas de imagens de destruição, num misto de compaixão
pelas vidas que são inevitavelmente afetadas, e de obsessão, assombro, pela
pedagogia da tragédia.
Mas hoje minha vida é dançar, golpear o chão com os pés,
romper as ondas do mar. Agradecer os aplausos, sofrer sua falta, fazer ruídos
violentos.
Tantos ex, nesses
dias in.
Parte da minha vida é dedicada a deixar de temer essa
energia extrusiva, ‘para fora’, tão assustadora dentro do lar, na pequenez do
meu corpo, das minhas tantas casas. Histórias infantis, paredes de palha, de
madeira, de cimento. Qual delas irá resistir? E se o sopro vem de dentro?
As costuras da escrita, esses labirintos de crochê, me
levam, quase sempre, ao útero, minha primeira casa, o dentro original, meu
primeiro dentro. E o trauma do primeiro sair.
Diz-se que o amor é uma invenção, nascemos com ódio, e só!
Com uma ânsia de vida que precisa de violência para se separar do corpo que nos
nutriu. A grande explosão. Big Bang:
assim começa todo universo, assim começou o meu. A fusão é essencial, mas quando
não se rompe aquele fio, quando um ser se resigna a viver a fantasia do útero
eterno, com as pernas encolhidas, sufoca-se em posição fetal. Morre ao tentar
se acalmar, ao tentar se apequenar para ficar.
Eu, como boa menina, não saí com facilidade. Tive problemas
com a raiva desde o útero. O medo de desagradar, todas aquelas ambições de
espaços maiores, a arrogância de considerar aquele lugar acolhedor e orgânico, meu
primeiro lar, inadequado à minha recém-adquirida grandeza. Até hoje não sei bem
cuidar de uma casa, com medo de que vou destruí-la. Por não saber como sair, também
não sei como ficar. Repouso e atividade em um enlace inescapável. Não se
soluciona um, sem mergulhar no outro.
“[...] as imagens do repouso, do refúgio, do enraizamento, [...] todas
elas sugerem um mesmo movimento em direção às fontes do repouso. A casa, o
ventre, a caverna, por exemplo, trazem a mesma grande marca da volta à mãe.”
A Terra e os devaneios do repouso – Ensaio sobre as imagens da
intimidade.
Gaston Bachelar.
Ninguém pensa na ira, na soberba necessária para sair da barriga. Não se fala muito disso, que os bebês não são inofensivos. De um dia para o outro, considerar-se apto a dar um salto evolutivo, respirar, viver na atmosfera. Pura e sadia arrogância. Depois, passar meses, anos, tentando se separar ainda mais, sofrendo para se contornar, defender suas próprias barreiras, sua ira como arma, contra esse retorno que se chama amor. Essa série de reparos constantes que fazemos ao destruir os laços, a cada segundo, quando viramos outra pessoa.
“[...] No empuxo da aceleração geral e da hiperatividade desaprendemos
também a ira. [...] A ira, ao contrário, coloca definitivamente em questão o
presente. Ela pressupõe uma pausa interruptora no presente. É nisso que ela se
distingue da irritação. A dispersão geral que marca a sociedade de hoje não
permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é uma capacidade que está
em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo
estado.”
Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han.
As mitologias ao redor do meu nascimento são várias e
confusas. Havia um cordão ao redor do meu pescoço, havia uma mulher, minha mãe,
incrivelmente forte e inteligente, mas jovem e exausta, num mundo de mulheres
exaustas, de autoridades que diziam que eu estava atrasada. Havia cirurgias e
todos aqueles seres de jaleco que queriam ser capazes de dar à luz, com facas e
anestesias. Sempre pensei que se tivessem me dado mais tempo, eu teria saído
sozinha. Mas hoje em dia, percebo, em todas as minhas repetições patológicas,
que eu ainda não existia. Esse corpo que não existe precisa que todo o universo
conspire, que todo a história se alinhe. Esse corpo de mulher, que já se sabia
rosinha, cuidador, paciente, podia esperar, devia esperar. Devia ficar. Ou,
esse corpo de mulher, que está ali, a seu tempo, criando pulmões, esperando sua
hora, precisa ser apressado. As duas fantasias me servem bem, daí a vantagem
das fantasias.
“Imaginar será sempre
maior que viver. O trabalho do segredo vai infinitamente do ser que esconde para
o ser que se esconde. O cofre é um calabouço de objetos. E eis que o sonhador
sente-se no calabouço de seu segredo. Gostaríamos de abrir e gostaríamos de nos
abrir.”
Gaston Bachelar. A água e os sonhos. Ensaio sobre a
imaginação da matéria.
Autonomia ou amor? Autenticidade ou submissão? Ex? In?
Posso ir até aquele cantinho, engatinhando e ainda ser amada, cuidada? Ainda
vou poder viver? Posso ir mais longe ainda e voltar sem retaliações? Na dúvida,
fica-se. Talvez seja mais seguro. Se eu ficar, tenho controle. In-volução. Observo,
então, atentamente, obsessivamente, qualquer sinal dessa mãe, dessa figura
materna, desse pai que ela idealiza. Observo-os, estudo-os, sou uma espiã sem
linguagem, ou sem língua, não sei. E crio inúmeras teorias, todas falsas, todas
teorias do medo e da sobrevivência, teorias mínimas, como uma criança,
pequenas, distorcidas. Testo suas reações aos meus desejos, às minhas ações,
aos meus deslizes, e como um cientista incompetente, registro tudo que
corrobora minhas fantasias invertidas de grandeza, de que minha raiva é
destrutiva, de que os adultos são frágeis, de que eu posso cuidar deles.
Gaston Bachelard em ‘A terra e os devaneios do repouso’,
argumenta que “a vontade de olhar para o
interior das coisas torna a visão aguçada, a visão penetrante. Transforma a
visão numa violência. Ela detecta a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode
violar o segredo das coisas ocultas. A partir dessa vontade de olhar para o
interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se
estranhos devaneios tensos, devaneios que formam um vinco entre as
sobrancelhas. Já não se trata então de uma curiosidade passiva que aguarda os
espetáculos surpreendentes, mas sim de uma curiosidade agressiva,
etimologicamente inspetora. É esta a curiosidade da criança que destrói seu
brinquedo para ver o que há dentro. (...) Não retemos senão a necessidade de
destruir e de quebrar, esquecendo que as forças psíquicas em ação pretendem
deixar os aspectos exteriores para ver outra coisa, ver além, ver por dentro,
em suma, escapar à passividade da visão.”
A criança nasce mundo, ela é toda, ela é tudo. Quaisquer
sentimentos e ações dos cuidadores são responsabilidade dela. A não ser que ela
possa ser. E para isso, é preciso que esse ódio não seja temido. A criança não
sabe nada sobre a guerra que estoura, sobre o luto, sobre a epidemia, sobre a
misoginia. Ela mede: se pode ser, pode ir, pode voltar. Pode viver. Mas ir não
é uma relação espacial, é uma errância subjetiva.
É preciso sobra existencial, gordura social, para que esse
ódio seja absorvido. Para que essa curiosidade investigativa, violenta, seja
vista como positiva. A criança é tão pequena e indefesa que teme matar, precisa
delirar sua impotência. É tão louca que se pensa mais forte que toda aquela
carne que a ampara, mesmo que mal. E talvez seja. Por que é pequena em matéria,
mas uma fundura de sombras e medos, um terror para os adultos. Foi projetada
para enlouquece-los com seu choro, com suas demandas. Amar é dar o que não se
tem. É dar sua falta. Aceitar que o choro de um bebê ecoe naquele lugar sem
peso que se aproxima da loucura.
Sheita Heti, no livro Maternidade (p.28), resume bem esse
sonho de toda criança, de todo adulto:
“Este será um livro para evitar as lágrimas futuras – para evitar que
eu e minha mãe choremos. Se, depois de lê-lo, minha mãe parar de chorar de vez,
poderemos dizer que o livro foi bem-sucedido. Eu sei que não é o trabalho de
uma criança impedir que sua mãe chore, mas não sou mais criança. Sou escritora.
A transformação pela qual passei, de criança para escritora, me deu poderes –
quero dizer que poderes mágicos não estão tão longe assim das minhas
capacidades. Se eu for uma escritora boa o bastante, talvez possa fazê-la parar
de chorar. Talvez eu consiga entender por que ela está chorando, e por que eu
também choro, e minhas palavras possam nos curar.”
Não tenho crianças, mas já fui uma, e como todos os adultos,
continuo sendo. E toda essa operação complexa de ser criança e adulto, num
mesmo corpo, brincar e não se matar, arriscar, conhecer, e ainda garantir algum
tipo de segurança e conforto, para que as próprias brincadeiras sejam
possíveis, é dos desafios que mais me surpreenderam quando vi que a vida adulta
não era nada como a fantasia que havia comprado na infância e adolescência. Não
comprei à toa, claro, me foi vendida com um objetivo muito claro, matar a vida,
matar esse ódio que é vida, essa ira que é separação, que é diferença, esse
olhar violento que tenta quebrar os próprios brinquedos, tenta se quebrar e
olhar para dentro. Essa ira de que falo, se fosse sentido, não se converteria
tão facilmente nas violências cotidianas que vemos, contra tudo que demonstra
ser buraco, ser vazio...tudo que não sou eu. Rupturas são violentas, e a
violência, em seu devido lugar, é vital. Evita todas as outras violências
deslocadas, da covardia, da projeção no outro. Bela violência de viver, sem precisar
matar ou morrer. (Na maioria das vezes.)
Tenho várias lembranças da raiva, a mais curiosa, numa briga
com uma de minhas melhores amigas no jardim de infância, para sentar no chão,
no primeiro lugar da fila. Senti um vazio. Sentia a falta dela. Senti esse
misto que chamam gozo, de um prazer com dor. De impor minha vontade, minha
competitividade. E estar lá, só, no lugar que queria. Depois, voltamos a
brincar. Eu com meu universo expandido, ela um pouco mais longe de mim. Sabia
que teria que passar um tempo consertando as paredes do que havia destruído.
O amor seria, assim, uma reconstrução, não é natural ou
instintivo. Sempre um ir de novo. Uma reparação. Retorno ao lugar do ódio,
agora livre do medo de se afastar e se perder. Esse aconchego que só existe
quando há duas peles, quando há um objeto que se encapsula, e cria o calabouço
do seu próprio segredo. Cria o espaço ao redor de si para que outro venha com
seu olhar, com sua curiosidade agressiva, no melhor sentido do termo. Não à
toa, o ex de existir.
Amar é o privilégio do fracasso! O amor é para os bons
cientistas.
Esse texto não é sobre dor. É sobre liberdade.
Poda
Scordinia - inflorescências |
Corpus Christi
Kitagawa Utamaro |
Esses rios de ar, de água, não me deixam parar. Atravessam uma carne que resiste. A realidade dela mesma é um limite, ela é um limite, a carne, que concentra o desejo em feixes contráteis, capazes de prazer, de lutar contra a dissolução no prazer absoluto - a morte, a loucura. As duas me atraem, permitir-se ceder, sair do mundo dos homens, de suas crises e contradições. Sair do mundo dos vivos, de suas moléculas entrelaçadas, dependentes, sofríveis. Existência plena, mineral.
Ídolos liberam em minha direção fios de aço, que se agarram em meus punhos para que eu possa descansar, enquanto o resto desse corpo é arrastado e minha cabeça rachada sangra.
Única forma de dormir, sono sem si.
Sono piedoso que liberta dos desejos. Desejos que giram roldanas, cordas e polias lubrificados com graxa preta, dentro do meu estômago. Cria sons impossíveis de violino, em uma carne ensanguentada - bile, gordura, ácidos e animais não digeridos. Mas as cordas soam como linha tesa, fio cortante. É duro suportar essa perpétua excitação nas extremidades, nos membros, no útero, no pescoço, na língua, nos lábios - todos eles-, nos nós concentrados de eletricidade que se acendem como vaga-lumes, em um triângulo quente que brilha entre minhas coxas.
É um mundo perigoso para pulsões fluorescentes, femininas, atraindo a atenção de predadores. Há que se contar com a proteção desse veneno próprio dos animais aposemáticos, que brilham cores vivas contra listras escuras, pois podem matar. Habilidade necessária, saber matar, com a própria carne, macia; sem dentes, sem garras. Evoluir esse veneno que liberta da camuflagem. Em algum momento um animal deve decidir que estratégia aprimorar para sua sobrevivência: forjar todas as cores opacas da floresta, das folhagens, do fundo do mar e, junto com o resto da matéria, assentar-se com as plantas, os fungos e os animais, em tons de marrom e verde; ou sintetizar venenos em sua pele úmida e brilhante. Há algo de sensual nas duas escolhas: a discrição da fusão com o ambiente, perpétua orgia esverdeada; e o apelo do objeto que se permite devorar pelo olhar, alimentando o desejo e sufocando-o, simultaneamente.
Cada animal sonha com aquilo que perde, ao ceder-se para a vida.
O vislumbre de uma mordida verde fluorescente penetra os sonhos de famintos seres marrons, que se debatem ao perceber que mordiscam carne proibida.
Uma cobra reluz na espera de outras peles venenosas para tocá-la sem risco de morte, penetrá-la neutralizando perigos, fazê-la sentir-se inofensiva.